Que é bem-parecido, vai por hábito ao mesmo barbeiro de propósito para cuidar só da barba e, às vezes, disfarça-se com um boné na cabeça quando quer ir jantar fora. Que foi guarda-redes de hóquei em patins. Que lhe pedem, por favor, quase a assediá-lo em conferências de imprensa, para que fale no seu inglês “perfeito” ou “lovely”. Que é unha e carne com Hugo Viana, o amigo de casa que será o futuro diretor-desportivo do City, o rival de Manchester que por arrasto na treslouca ordem de ideias dos tabloides forçará as mulheres de ambos, parceiras de negócio, a rivalizarem também. Que é filho do ‘Rei das Chaves’ de Alverca. E quiçá seja desta que vem aí o Messias ansiado pelo United desde a retirada de um escocês que mascava furiosamente uma pastilha no banco.

A última semana de vai-não-vai de Rúben Amorim fê-lo ser escalpelizado pelos jornais ingleses, uma balbúrdia de atenção que se repercutiu na sua vida a ser esparramada em páginas diversas. Foram dias de nervos e ânsias que haveriam de desaguar nesta despedida sem vagar para confetis, um derradeiro jogo do treinador em Alvalade logo contra a equipa que mais cala estádios, a aranha de onze patas de Pep Guardiola que monta uma teia interminável de passes. Seria uma ocasião para catarse, repassar de memórias que ficam. Mas, aos quatro minutos, o Manchester City já se deixava de cerimónias e usurpava a noite em seu proveito.

O castigador golo de Phil Foden apareceu quando ele e outros dois jogadores cercaram num ápice o relaxado Morita, que recebeu a bola perto da sua área sem rodar antes a cabeça e em zonas que lhe eram estranhas, no centro-direita onde não costuma jogar. Roubado o japonês, Debast não quis sair ao caminho do adversário e Franco Israel tentou, desastrado, uma defesa antes de saber qual seria o remate. A prova do quão Rúben Amorim estava anestesiado de sentir nostalgia por tanto pensar no jogo, como confessou antes, era madrugadora: trocou os seus médios de lado, o desábito de um deles silenciava os adeptos quando a tarja em honra do treinador, com um gigante “obrigado”, ainda há pouco fora recolhida da bancada central.

Se jogar contra o City é horrível, matéria de pesadelos, ficar tão cedo em desvantagem enegreceu a tarefa, mesmo que pouco depois do golo o Sporting tivesse, quase do nada, uma flagrante oportunidade para atenuar o seu carro. E à sua maneira. O matreiro Pote, pequenino mas atento, cortou um passe e rapidamente aproveitou o crónico balanceamento dos ingleses para a frente, lançando Viktor Gyökeres naquilo que o faz ser temível. Cheio de relva livre à vista, o sueco correu literalmente metade do campo sozinho, cheirava ao inevitável em Alvalade, mas, quando se acercou do bluff de Guardiola, a cabeça do sueco pareceu dar horas. Perto do guarda-redes que supostamente não ia ser titular, o avançado abrandou, tentando picar um chapéu na subtileza ao invés da fúria que o parece mover. E Ederson limitou-se a agarrar a bola.

Desaproveitada a bandeja de ouro, o Sporting condenou-se a sofrer.

Foram longos e desérticos minutos de tonturas dentro do carrossel do Manchester City, que explanou a sua marca de água no relvado de Alvalade secando quaisquer lágrimas que estivesse a ser aguentadas nos olhos dos adeptos. Com Bernardo Silva e Kovacic na base das jogadas e Rico Lewis, o lateral direito, a imiscuir-se dentro do baixo bloco do Sporting para dar seis irrequietos jogadores a cada ataque inglês, híbridos a trocarem de posições junto à linha defensiva de cinco homens dos leões, a tormenta foi a esperada. A multiplicação dos fios da teia de passes do City, combinada com a pressão asfixiante dos seus, engalfinhou os leões neles próprios.

Só a presença de Haaland provocava erros de abordagem de Diomande e o bruto e brutal norueguês, por duas vezes, sacou defesas apertadas de Israel. Numa outra, em um de vários cantos batidos para explorar as redondezas do guardião uruguaio, Gyökeres evitou o golo em cima da linha. Com os seus pézinhos de lã, Phil Foden planava sobre o campo, tocava na bola ali e recolhia acolá, com um desses sapateados deixou Bernardo solto na área para rematar perigosamente e foi quem mais beneficiou da supremacia do City na primeira parte. Com Trincão e Pote a serem muito atraídos pelos iscos dos defesas, o City encontrava bastante jogo por dentro. E o Sporting muito sofreu.

Os jogadores erravam passes fáceis, precipitaram-se a soltar a bola, eram rápidos - ou mais apressados do que o costume - a procurarem as cavalgadas de Gyökeres. A importância do momento, os arrepios cénicos na espinha, pareciam forçar o pé em muitas ações. Apenas aos 25 minutos o Sporting teve a sua primeira posse de bola paciente, com calma, dentro do meio-campo adversário, sem que isso lhe serenasse o jogo por aí além. Mas, aos 38’, numa jogada de três passes, ocorreu a brusca reanimação.

À direita, Geovany Quenda recebeu a bola, orientou a receção para dentro e depressa rasgou um passe tenso para acicatar o galope de Gyökeres. Lançado no espaço, a correr enraivecido como gosta, o sueco levou à frente Simpson-Pusey, o mais novato dos defesas, para finalizar o empate dentro da área com um remate algo atabalhoado. As gargantas de Alvalade despertaram, era noite de festa outra vez.

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Logo a seguir, ainda o City se recompunha do chicote, já Trincão cavalgava um contra-ataque nos seus pés para acabar a tabelar com Pote e, na área, pontapear a bola sem pontaria. Não importava, os jogadores do Sporting já tinham a corrente elétrica do desfibrilador a agitá-los, estavam vivos e nem o descanso do intervalo amorteceu essa descarga.

Ficou demonstrado na bola de saída, logo aí, numa intenção, na vontade em prosseguir com o peito feito. O Sporting passou-a para trás, ela foi aos médios, depois aos defesas, com tino chegou a Maxi Araújo e logo a Pedro Gonçalves, o transmontano dos processos difíceis porque nele são simples, ou tudo Pote faz parecer simples, como o foi esgueirar-se da vigilância de Rico Lewis e tabelar com o uruguaio antes de o deixar escancarado diante da baliza com um passe a rasgar. Mal a segunda parte arrancou, o 2-1 demorou 19 segundos a aparecer e enlouqueceu as bancadas de Alvalade, que vociferavam a mesma loucura presente nos gestos de festejo dos jogadores.

E um decidido Sporting, levado pelo frenesim ou embalado pela confiança, alguém haverá de o explicar, deixou-se ir, sem matutar ou querer conspirar com o jogo, mas disposto a ser arrastado pela corrente. Pouco depois, numa recuperação de bola transformada em ataque rápido, Trincão arrancou pela direita, a jogada colada ao seu pé esquerdo, até ser derrubado na área da vez seguinte em que os leões chegaram perto da baliza. O barulho do estádio era ouvido em Manchester aquando do apito, mais ainda assim que Gyökeres, devolvido às barbas de Ederson, o enganou para endoidecer Alvalade e os jogadores por consequência, assomados por uma histeria cénica.

O período de graças do Sporting duraria mais uns 10 minutos. A bola foi um bem mais ou menos dividido, não uma ditadura azul-bebé, Hjulmand e Morita intercetavam intenções, Diomande domesticavam Haaland, na direita o raçudo Maxi Araújo engolia a maioria das ações de Savinho, a reencarnação de Mahrez que era a maior ameaça nas ações individuais no Manchester City. Findo esse período, facto é que os ingleses regressaram à sua versão por defeito, uma maneira muito próprio de encostar os adversários à área, entortar-lhes os olhos com passes, tabelas e triangulações e obrigar quem os defronta a chamar as artes mais negras, mas necessárias, do futebol.

O Sporting teve que resistir, durante muito tempo aguentar mais do que jogar enquanto Phil Foden, menos proeminente, rematou, Savinho o imitou e Bernardo Silva, capitão cityzen para a noite, furar a área atrás da bola. No ressalto que disputou com Diomande, a bola foi à mão do costa-marfinense e o VAR chamou o árbitro para o penálti. Em vez de silêncio, o estádio sibilou para presentear Haaland com uma valente assobiadela. Se foram, ou não, as vibrações sonoras a afetarem a sua trajetória, a bola em que o pé esquerdo do norueguês bateu esbarrou com estrondo na barra.

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Repetiu-se a loucura nas reações. E prolongava-se. Diamonde erguia um punho e dava chapadas no peito de Israel, uns minutos mais tarde Quenda deu murros no ar para celebrar um corte que deu um pontapé de baliza, Debast depois abriu os braços a celebrar um cruzamento para fora do adversário. Quando o “melhor avançado do mundo”, palavras de Guardiola, falhou o penálti, restavam quase 20 minutos por jogar, tempo que por vezes parece engordar especialmente se for esta equipa inglesa a persegui-lo, em sintonia com a ilusão de os seus jogadores se multiplicarem nos momentos em que passam a bola.

Mas, se o Manchester City tem Haaland, o mastodonte goleador que preencheu a segunda parte a buscá-lo, sem sucesso, por entre as pernas e encostos de Diomande, por vezes Debast, o Sporting tinha Gyökeres. Teve-o, sobretudo, a partir do empate, já vinha de trás e desde que a equipa regressou a si, à seu método, sem ligar a artimanhas mentais. O sueco apareceu a massacrar outra parca reação à perda de bola do City que expôs as suas fragilidades na transição defensiva: combinou com Pote, esperou pelo seu passe, correu pela esquerda e quis deitar Ederson, que se atirou aos seus pés no derradeiro momento do remate.

Esquivando-se do penálti falhado dos ingleses, o por fora sereno Rúben Amorim, certamente a escaldar por dentro, refrescou a equipa com a rapidez de St. Juste atrás, a calma de Daniel Bragança no miolo e os safanões de Geny Catamo na ala direita. Um desses, quando os leões rondavam a área, recuperou a bola, dirigiu-se à área e Matheus Nunes deitou-o à relva. Era outro penálti, mais uma chance para o abominável homem da máscara de mãos se mostrar na Liga dos Campeões. O hat-trick de Viktor Gyökeres, de um homem cujo primeiro rasto no jogo fora um de hesitação, de um sobrepensamento que o fez agir não como costuma, era um desfecho condizente com a imagem que ficará do Sporting.

Desta versão de uma equipa adulta e madura, consciente do resguardo que merecem as suas limitações e refastelada na coragem de ir para cima do adversário, não do City, mas de quem está do outro lado do campo, com as suas fortalezas. O Sporting teve engenho, alguma arte, a sorte também o visitou, mas nos 10 minutos que ainda havia por jogar não couberam sobressaltos, só um remate à barra de Geovany Quenda, o descarado adolescente que pegou na bola e ousou ir sozinho contra a baliza. Quando a partida findou, uma euforia à espera de explodir, os cytizens de Guardiola em nada ameaçavam, Gündongan, De Bruyne ou Doku eram insossos, restava uma pálida imagem da equipa que ainda não tinham sofrido golos nesta edição da Champions e perdia pela terceira vez seguida na época.

Para o Sporting, indo o apito à boca do árbitro, a sinfonia de ruído exultante soltou os seus acordes, libertada da espera que a prendia.

Fosse como acabasse por ser, a noite estava condenada a um anti-climax. Com a vitória feita à goleada, um incrível 4-1 ao Manchester City na última noite europeia com Rúben Amorim a espelhar o 1-4 que o destroçou na primeira dessas noites, no mesmo estádio, contra o LASK Linz, as bancadas de Alvalade não perderam uma alma com o final do jogo. Com as suas paredes à pinha, milhares de pessoas em pé esperaram pela volta olímpica que o treinador deu ao relvado após distribuir abraços apertados a cada um dos seus jogadores, ele sorrisos-mil, a sorrir que nem criança, finalmente a invadi-lo a nostalgia que estancara com os nervos.

A exuberância do festejo pela vitória, a mais relevante na história do Sporting na Liga dos Campeões, misturou-se com a melancolia de um adeus antes do adeus. O último jogo de Rúben Amorim em Alvalade fez o estádio prestar a sua vénia ao treinador que teve 111 dos 230 encontros no clube, um deles a derrota por 1-5 no mesmo lugar, frente ao mesmo adversário, em que os adeptos também ficaram para aplaudir. Não assim, sem a apoteose, muito menos o corredor de palmadas no cachaço a que os jogadores o prestaram antes de pegarem nele e, braços feitos trampolim, o atirarem ao ar.

Catártico, o momento parecia uma piada de gosto duvidoso: era a farra por uma vitória em novembro, a glorificação do, talvez, melhor treinador da história do Sporting, a despedida de um périplo que não tinha de terminar na opinião de toda a gente que ali estava, mas que vai acabar.

Temia, jocosamente, Rúben Amorim que ganhando ao City os adeptos e a falange carente do Manchester United pudessem fazer dele um Alex Ferguson que nunca será. O jogo mais visto da sua carreira, os 90 minutos que mais olhos colaram a televisões, trouxe-lhe, igualmente, a maior vitória. A sua última noite em Alvalade ficará como a prova, tantos anos depois, do que recheia a estrelinha da qual tanto falava no caminho para a sua primeira alegria com o Sporting: acabou por lhe dar a melhor noite do melhor período da sua vida. Da vida que a partir de domingo será bem diferente.