Certinho sem ser divergente, um cauto arisco ao risco, as intervenções iniciais de Ricardo Esgaio na Áustria foram uma cautela por ele dedicada à sua vida recente, quem sabe à sua existência de sempre no Sporting. O mais órfão de tempo, esta época, entre os jogadores de campo apareceu a titular devido à míngua de corpos saudáveis na defesa por culpa das lesões. Rúben Amorim resgatou o seu “relógio suíço”, por admissão do próprio, o mesmo tipo a quem até a Liga dos Campeões devolver um ano depois a equipa não exatamente a Graz, mas uns 100 quilómetros lá perto, apenas dera 93 minutos em 12 jogos há um mês dissera que “só joga mais como defesa lateral”.

Pois bem, são as circunstâncias que se encarregam de envelhecer as palavras e a série de gente aleijada ou a curar mazelas fez o treinador devolver à equipa o discreto Esgaio, o trabalhador Esgaio, o também patinho-feio Esgaio para os adeptos que desajustam expectativas às qualidades dos jogadores, mas o Esgaio que tratou de se rechear de ações certeiras ao longo de uma primeira parte mandona do Sporting. Ao contrário das certezas ditas, o tempo concedeu um bom envelhecimento à exibição dos leões numa casa do Sturm Graz.

Pouco mais de um ano volvido de uma custosa vitória, cheia de soluços e solavancos sobre um relvado esburacado para arrancar uma aventura na Liga Europa, este Sporting evoluído na sua aura de campeão, com dinâmicas novas, encharcado no óleo que suaviza os movimentos ofensivos da equipa, teve 45 minutos a impor a sua vontade na Áustria. Livre da pressão dos adversários na saída de bola, os leões ainda demoraram uns 15 minutos a maquinar o seu ímpeto para lá da predominância de Hjulmand e Daniel Bragança a meio-campo (mesmo dupla da partida de 2023). Mas, quando o fizeram, precisaram de pouco para verem baliza.

Já depois de Gyökeres, na área, insistir na auto-suficiência para matar uma bola no peito e rematar à meia-volta e sacar do guarda-redes Kjell Scherpen uma parada a recordar os feitos de há um ano, o Sporting teve o seu mel num tricô telepático de uma jogada mais do que ensaiada: como vem mostrando esta época, o avançado sueco recuou um pouco, deu-se a ser apoio, serviu Hjulmand que se aproximou dele e o dinamarquês lançou Geny pela direita. O cruzamento do moçambicano parecia a derradeira portagem para a finalização e só não o foi porque Gyökeres, estranhamente, falhou na bola que seria emendada por Nuno Santos. Aos 23 minutos, o golo.

GINTARE KARPAVICIUTE

Ao executar o complexo de forma tão fluída o Sporting encontrava a simplicidade do seu jogo. Hjulmand e Bragança combinavam a preceito com toques curtos, juntinhos um ao outro, a darem o engodo para rápido porem a bola no espaço livre. Trincão tocava em Gyökeres e fugia em tabelas luso-suecas que baralhavam marcações. Gonçalo Inácio acelerava as jogadas na base e via passes entre linhas que só emperravam quando solicitavam Maxi Araújo e o seu corpo a estranhar os espaços, longe da linha e a receber de costas para o adversário. Várias bolas o uruguaio perdeu assim, desabituado ainda às funções que ser atacante e não ala lhe pedem.

Sem preponderância no ataque, limitando-se a servir Geny na largura ou o médio a aparecer nas costas da linha de pressão, os simples passes e decisões Ricardo Esgaio também garantiam continuidade às posses do Sporting. Não era por ele que se desengatavam pequenos problemas na construção, tão pouco foi o lateral que só seria lateral mas teve de ser defesa central a prejudicar a equipa.

Quando saiu, aos 55’, só vira de perto as consequências de uma transição rápida do Sturm Graz em que vivalma saiu ao caminho do veloz Yalcoulé, que meteu um passe nas costas de Esgaio de onde Bøving rematou para Franco Israel desviar em esforço e a recarga, algo alarmante, de Bieret ser bloqueada por Gonçalo Inácio. Seria a ameaça-mor dos tímidos austríacos, obrigados pela UEFA a jogarem em Klagenfurt, no estádio de Wörthersee com um tapete a descolar pedaços de relva em cada minuto no qual quiseram, no arranque da segunda parte, fazer pela vida e esticar a sua pressão, apertando já a saída de bola do Sporting.

E houve tímidas dificuldades, um desconforto q.b. nos primeiros minutos de uma equipa que não tremeu por rotinada estar a trazer o guarda-redes a participar na base das jogadas. Usando Franco Israel, puxando mais por Bragança e Hjulmand nas triangulações para encontrar o homem livre tão atrás no campo, a equipa de Rúben Amorim evadiu-se das nobres e novas intenções do Sturm Graz. Por vezes, até com classe, quando Zeno Debast cortou uma jogada junto à linha lateral, levou a bola uns metros, enganou dois adversários e pela esquerda entortou a bota para lançar de trivela o rinoceronte enraivecido que até então estava meio-sorumbático.

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Caindo o Sturm Graz em cima de uma tentativa de recuperar a bola recém-perdida, coube a Niklas Geyrhofer ficar com as sobras e cair na marcação - a mais de 30 metros da sua baliza, sendo último defesa, cheio de espaço por cobrir - sobre Viktor Gyökeres. À infelicidade o austríaco juntou desconhecimento acerca do sueco, porque estava a bola a chegar ao avançado, ele de costas, e colou-se ao brutamontes, cumpriu a cortesia de lhe fazer a vontade. Mal o avançado sentiu o encosto, usou o seu esqueleto protegido por musculatura para deixar a bola rolar, rodar sobre o adversário e desatar a correr embalado em direção à baliza.

A jogada trademark Gyökeres fez o segundo golo (53’) com um golo nunca igual, se há coisa impossível no futebol são bolas siamesas ao entrarem na baliza, mas um golo que o sueco já parece ter feito algumas vezes sem que vídeos, softwares de análise, palestras e lições pareçam ir servindo para avisar todos os defesas da maneira preferida do avançado em esquivar-se de quem o vigia.

Este golo confirmaria também a segunda vitória nesta Champions remodelada à tranquila equipa do Sporting, que então parecia feliz por ser pressionada e cuidada ao lidar com as ténues vontades do Sturm Graz. O campeão austríaco acentuou ainda mais o seu grito de reação, a pressão manteve-se, projetou mais jogadores na frente, quis mais, só que apenas teve um bocadinho mais a partir dos 70 minutos, quando a Bøving juntou a habilidade em finta curto do extremo Lovro Zvonarek e a faceta mais combinativa do avançado Erencan Yardimci. Ambos surgiram mais em zonas interiores, a chatearem a atenção de Hjulmand e da sua nova companhia, Morita.

Mais não fez do que acelerar um par de transições rápidas que rondaram a área de Israel e de ver Gazibegovic, de bem longe, testar as mãos do guarda-redes uruguaio num remate em suspensão. Ainda que com menos bola, o Sporting controlou o ritmo com a que teve, maduro e adulto, lidou calmamente com os arrepios de cruzamentos, os espasmos de algum contra-ataque, ao ser a calma equipa que ainda viu Trincão farejar um golo com um remate em banana e Gyökeres falhar outro quando o voltaram a servir em corrida e se viu sozinho perante o guarda-redes.

Esta falha do avançado juntou-se à inócua do lance do primeiro golo, se quisermos também a outra finalização semelhante que não concretizou apenas com o guardião entre ele e a baliza (nessa, estava fora de jogo). Mas são como gotículas de orvalho presas a uma folha pela manhã, inofensivas face ao quanto mói os adversários ao ponto de ter refeito, à sua maneira, um golo dos seus.

O Sporting chegou aos sete pontos na Liga dos Campeões, quando entrar no avião de volta a Portugal estará provisoriamente no pódio de uma classificação com 32 equipas e a equipa de Rúben Amorim, com mais ou menos mazelas, remendos feitos aqui e ali, vai mantendo uma constância vitoriosa nos resultados. Sobretudo, porque as exibições coletivas continuam estáveis na sua bitola.

E, no fim, Rúben Amorim disse que “o Esgaio esteve muito bem”.