Quando pensamos na figura do "árbitro de futebol", surge-nos quase sempre a imagem daquele homem/mulher de apito na boca, a tomar decisões discutíveis, rodeado por jogadores exaltados e por milhares de adeptos que assobiam a cada gesto.

O que poucos imaginam (ou nem sempre se lembram) é o que existe para lá desses noventa minutos de bola: um universo de preparação intensa, sacrifício e exigência. Uma exigência tão ou mais rigorosa do que a dos atletas que fazem do futebol a sua atividade diária.

Hoje em dia, a arbitragem do futebol profissional está longe de reduzir-se a infrações assinaladas ou ao agitar da bandeirola durante o jogo. É bom que se perceba isso.

Os árbitros seguem a passos largos para a profissionalização plena e vivem num regime de disciplina constante.

Treinam fisicamente quase todos os dias, seguem planos nutricionais pensados para a exigência diária, estudam e testam as leis de jogo, analisam sistemas táticos e vídeos sobre decisões complicadas. Além disso, participam em dezenas de seminários, têm sessões de coaching psicológico e são avaliados amiúde.

O nível de preparação técnica e física que lhes é pedido é altíssimo, embora possa ainda ser aumentado, melhorado. Naturalmente.

Há também um trabalho invisível que é feito com o apoio de uma equipa especializada: o da preparação mental. Um árbitro de topo tem que saber gerir pressão como poucos. Precisa de decidir em frações de segundo com milhões a observá-lo e sabendo que alguns erros, em função do palco ou da consequência, podem ser ampliados infinitamente na imprensa e redes sociais. É ainda importante que lidem adequadamente com a ansiedade pré-competitiva e com o impacto pessoal e familiar que resulta do escrutínio feito às suas atuações.

É necessário que tenham uma estrutura mental e emocional forte e é fundamental que aprendam a ser emocionalmente intransponíveis. Resilientes. Seguros.

Mas por muito que esse quotidiano de labuta esteja hoje num patamar elevado, há duas realidades incontornáveis: a primeira é que é sempre possível fazer melhor. É sempre possível trabalhar mais, com outro afinco e exigência, para obter melhores desempenhos individuais e coletivos.

A segunda é que os erros nunca deixarão de existir. Seria utópico exigir perfeição ou infalibilidade num universo demasiado humano, cuja essência do trabalho raramente é objetiva. E precisamente por isso que nas maiores ligas do planeta, nas grandes competições europeias, nas mais prestigiadas provas mundiais, há boas e más decisões.

O segredo para minorar essa imperfeição é simples: trabalhar, trabalhar, trabalhar. Exigir mais compromisso, foco, empenho e atitude. E esse compromisso existe. Essa vontade está lá, identificada, diagnosticada, balizada.

É também fundamental que cá fora todos percebam (e conheçam) a forma como se treina, prepara e analisam jogos. A demonstração do que é feito cá dentro credibiliza e desmonta a ideia de leviandade, de desonestidade, de premeditação maquiavélica.

Já percebemos há muito que a maioria dos erros resulta de inexperiência, comunicação deficiente, foco errado, precipitação, distração momentânea ou incompetência pontual (má aplicação da regra). O que também percebemos é que, apesar disso, não há desonestidade.

Todos os árbitros têm família. Têm filhos, pais, avós, tios e primos, amigas e amigos, colegas e vizinhos. São pessoas íntegras.

Devem ser responsabilizados por erros evitáveis, sim. Devem aceitar as consequências desportivas de más decisões que sejam impactantes, estruturantes. Certo. Mas o que não devem nem podem é serem rotulados de ladrões ou corruptos. Não é justo, nem é verdade.

Penso que é tempo de olharmos para estes agentes desportivos não como os vilões do costume, mas como alguém que é parte integrante do jogo, da indústria. Talvez seja tempo de reconhecermos que, se queremos um futebol melhor, precisamos de ser mais justos e equidistantes. As emoções são parte bela do espetáculo, a irracionalidade não.

Se todos fizermos a nossa parte, o futebol só tem a ganhar.