O que faz um homem quando se confronta com a brevidade da vida? Arruma ideias — claro. Mas quais ideias? Organiza o património? Passa a vida a pente fino, como quem faz um exame de consciência? Lista desejos num caderno barato? Manda vir o Director Espiritual para se confessar? Errado.

Um homem, quando se depara perante a possibilidade do ocaso, escreve um livro sobre futebol. Só isso. E foi exactamente isso que fez Carlos Maria Bobone: crítico literário do Observador, editor da Crítica XXI, autor de "A religião dos Livros – Alfarrabistas, Livrarias e Livreiros", "Monarquia – História, Doutrinas e Ideias" e "Camões – Vida e Obra" — e, sobretudo, pai de quatro filhos.

Foi para eles que escreveu. Vendo-se acamado, a travar uma guerra desigual contra o cancro, pensou nos filhos — porque quem tem filhos pensa neles antes sequer de pensar na vida depois da morte. E percebeu: talvez já não tivesse tempo para os conduzir pela mão às grandes artes, às grandes letras. Mas ainda podia, agora, já, tocar-lhes a paixão primeira — o futebol, esse furacão bruto que apanha todas as crianças antes de elas aprenderem a dobrar os joelhos para rezar. Então escreveu.

Poderia ter escrito sobre cavalaria, poderia ter escrito sobre honra, poderia ter escrito sobre Deus. E escreveu sobre essas coisas todas, escrevendo sobre futebol — porque o futebol é a última cavalaria, a última honra, a última divindade de chuteiras nos pés. Fê-lo para lhes transmitir a única coisa que importa: como caminhar sem cair no pântano.

Não conhecíamos em Bobone um interesse especial pelo fenómeno futebolístico. A literatura, a filosofia, a teoria política — essas sim, eram as suas trincheiras. Mas futebol, não.

E, no entanto, à medida que avançamos no livro, perguntamo-nos como foi possível. Carlos escreve como quem joga. Como se a mão calçasse umas Puma King, e sobre o papel com relva semeada, a ponta da esferográfica rolasse, feita de capão e glória.

As mudanças posicionais, a ocupação do espaço em cada parágrafo, a maneira como a bola — perdão, a ideia — desliza de um assunto para outro sem nunca perder o leitor, são o retrato literário do futebol total do Ajax de Cruyff: há ali um entendimento superior e uma execução que poucos dominam.

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Veja-se, por exemplo, como nos leva da Roma Imperial à França Revolucionária em meia dúzia de linhas — apenas para ilustrar as origens aristocráticas do futebol. Ou como, ao falar da pureza das selecções, triangula entre Checoslováquia, U.R.S.S. e Senegal, para depois aliviar a bola no peito da Hungria dos anos 50 e rematar a explicação definitiva sobre o futebol que ainda hoje jogamos.

Já vos disse para irem a correr comprar o livro? Carlos Maria Bobone não escreve para impressionar. Escreve para explicar. Para ensinar. E fá-lo bem.

Fala-nos da excentricidade do guarda-redes, essa personagem solitária e luminosa. Da numerologia sagrada das camisolas, que transforma cada jogador num número e cada número num destino. Da simbiose brutal entre uma figura, um clube e uma cidade — Maradona e Nápoles, Pinto da Costa e o Porto. E em como isso faz do futebol uma civilização inteira, com as suas catedrais, os seus mártires e os seus criminosos.

Mas, sobretudo, eleva o futebol à sua dimensão maior: a de resposta existencial. Em "O Jogo da Glória", o leitor percebe que o futebol é como uma canção delicada e pungente: contra a vida reduzida a trabalho e digestão, contra o absurdo sem rito, contra o século XX e as suas mentiras políticas.

Uma das partes mais bonitas do livro é aquela em que Carlos Maria Bobone estabelece a relação da infância com o futebol. É aí que a instabilidade entre o registo académico e o íntimo se torna mais comovente, e que o livro se afirma como uma pequena raridade. Bobone começa frio — como quem dá uma aula de Geografia — e, de repente, abre o peito com uma faca de cozinha.

Um dos momentos mais fortes é quando descreve o futebol como "a humanidade dos derrotados". Outro, quando associa as infografias dos jogos aos primeiros desenhos infantis, em traços toscos e vigorosos. Vai subindo e descendo entre o pessoal (a infância, os filhos, a própria desilusão) e o colectivo (Glasgow, Manchester, a Argentina). Esse vaivém constante é a alma que atravessa todo o livro. E depois, o momento da confissão desremediada: "O futebol é o maior dos sonhos falhados." Não o futebol como sonho cumprido, como vendem os senhores do marketing da FIFA, mas o futebol como ferida incurável — tão incurável como o que levou Bobone a escrever este livro: a impossibilidade de proteger os filhos da dor.

Ao escrever e publicar este livro, Carlos Maria Bobone cumpre um acto de pura generosidade. Nós que o lemos, somos incluídos junto dos destinatários primeiros destas páginas — os filhos do autor. E confirma assim esta certeza que nos consola: no meio do ruído e sempre contra todas as expectativas, o futebol permanece um rito de comunhão e de esperança. Um lugar onde o homem, descalço e inteiro, se recorda que nasceu não apenas para aguentar esta vida, mas para superar-se — quando ganha, quando perde, mas sobretudo quando joga.

Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa.

Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.

E escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.