O Grand Slam Track foi apresentado em junho de 2024 como um luxuoso bote salva-vidas do atletismo, modalidade que cola muito boa gente à televisão durante uma semana de quatro em quatro anos, mas que vive num relativo anonimato para os não apaixonados pelas corridas, lançamentos e saltos durante o resto da Olimpíada, mais agora que está órfã de uma super-estrela mundial como era Usain Bolt.

A cabeça por detrás do projeto, o quatro vezes campeão olímpico Michael Johnson, que chegou também a ser o homem mais rápido do mundo nos 200 e 400 metros, viu na criação de uma competição privada, fora da esfera da World Athletics, a federação internacional, o caminho para dar ao atletismo o papel e o destaque que merece. Apresentou um novo formato, com importantes prémios monetários que chamassem os melhores do mundo, apostando no mediatismo dos atletas, nas rivalidades entre eles e nas novas tecnologias que atraem os mais novos para o desporto, com foco nas redes sociais e na análise de dados.

Os 100 mil dólares (cerca de €85 mil ao câmbio atual) que cada atleta podia ganhar em cada uma das quatro etapas eram números nunca antes vistos, numa modalidade que ofereceu, por exemplo, 70 mil dólares a cada um dos campeões nos últimos Mundiais, em Budapeste 2023. A promessa de transmissões televisivas dinâmicas, com duelos entre os mais rápidos do planeta, fariam o resto.

Mas algo não terá corrido como a organização esperava.

O antigo recordista mundial Michael Johnson é o ideólogo da competição
O antigo recordista mundial Michael Johnson é o ideólogo da competição NurPhoto

Primeiro, foram os melhores do mundo que não apareceram. Ou melhor, nem todos. Para a sua pool de 96 atletas, divididos entre atletas de elite (os racers) e os chamados challengers, que iriam desafiar os racers, o Grand Slam Track conseguiu atrair estrelas como Sydney McLaughlin-Levrone, recordista mundial e grande dominadora dos 400 metros barreiras - ainda assim, uma das mais discretas campeãs olímpicas do atletismo. A compatriota norte-americana Gabrielle Thomas, campeã olímpica dos 200 metros, também fez parte do elenco feminino. Mas faltou, por exemplo, Femke Bol, rival de McLaughlin-Levrone nos 400 metros e uma das atletas europeias com maior projeção. Julien Alfred, campeã olímpica dos 100 metros e prata nos 200m, declinou participar.

No lado masculino, um cenário semelhante. Kenny Bednarek, prata nos 200 metros em Tóquio 2020 e Paris 2024, era o nome mais forte na velocidade. Mas não estiveram Noah Lyles, o extravagante campeão olímpico no hectómetro em Paris, ou Letsile Tebogo, ouro nos 200 metros nos últimos Jogos. Para o meio-fundo, estava o britânico Josh Kerr, mas não o seu figadal adversário Jakob Ingebrigtsen. A questão das rivalidades ficou, desde logo, algo comprometida.

Vieram depois as bancadas vazias na primeira etapa, em Kingston, na Jamaica. O cenário não melhorou por aí além em Miami e Filadélfia. A 12 de junho, o Grand Slam Track anunciava que a última etapa, em Los Angeles, já não se iria realizar, opção justificada com a necessidade de não prejudicar o longo prazo de uma competição acabada de nascer.

“A decisão de concluir a temporada inicial do Grand Slam Track não foi tomada com leveza, mas acreditamos que chegámos aos objetivos que assentámos para esta época de estreia e que temos de olhar para 2026 e mais à frente”, sublinhou Michael Johnson em comunicado, onde destacou a necessidade de haver “aprendizagens e fazer ajustamentos” para o projeto continuar a evoluir. “Às vezes temos de tomar decisões que não são confortáveis, mas o mais importante é o futuro e a sustentabilidade da liga”, apontou ainda.

Só que agora surgem notícias de que muitos dos atletas ainda não foram pagos pela sua participação e resultados nas três etapas da competição. Sebastian Coe, presidente da World Athletics, confirmou a preocupação de vários participantes e diz que a organização está a acompanhar a questão. “Não há como estar aqui a fazer de conta que isto é uma situação satisfatória”, apontou, citado pelo “Guardian”.

Sydney McLaughlin-Levrone foi uma das campeãs olímpicas presentes
Sydney McLaughlin-Levrone foi uma das campeãs olímpicas presentes Michael Pimentel/ISI Photos

Apesar do Grand Slam Track fazer concorrência às provas da World Athletics, nomeadamente à Diamond League, Coe nunca se mostrou contra o aparecimento do projeto de Michael Johnson. “Dou as boas-vindas a tudo o que é inovação e investimento no atletismo, dentro do que é razoável. Quero que seja um sucesso, há espaço para toda a gente, desde que haja comunicação e coordenação no calendário”, frisou numa conferência de imprensa em dezembro passado, em que assumiu a importância da chegada de dinheiro à modalidade, que tem dificuldade em gerar riqueza.

Agora, o representante máximo do atletismo a nível mundial lança um discurso duro e até com algumas bicadas a Johnson. “Para estas coisas funcionarem, não podem ser projetos de vaidade. Têm de estar orientados para algo prático e que seja viável”, apontou, pedindo a quem estiver interessado em organizar provas que “pelo menos tenha a cortesia de gastar o seu tempo e esforço, tanto intelectual como em recursos, em ter a certeza que funcionam.”

“Isto não é bom. Eu sei que é uma startup, mas os atletas têm de ser pagos”, realçou ainda o britânico, lamentando que estes casos se possam tornar numa distração para a modalidade, que terá Mundiais este ano, em Tóquio, durante o mês de setembro.

O “Guardian” revela que alguns agentes já terão sido informados que os pagamentos vão começar a chegar às contas dos seus clientes este mês, mas que os valores totais só deverão ficar saldados em finais de setembro. Numa entrevista ao mesmo jornal, em abril, quando o Grand Slam Track dava os primeiros passos, Michael Johnson lembrava que as “as startups não dão lucros ao primeiro ano” e que estava a investir para “o longo prazo.”