Algures durante o verão de 2014, era perfeitamente legítimo que Ruben Amorim sentisse estar no auge da sua carreira de futebolista. Com 29 anos, acabava de completar uma histórica época no Benfica, disputando 37 jogos ao serviço de uma equipa que ganhou campeonato, Taça de Portugal, Taça da Liga, chegou à final da Liga Europa e, no arranque da época seguinte, ergueu a Supertaça.

Livre do exílio de Braga, as divergências com Jorge Jesus foram sanadas e o utilitário do treinador estava em grande. Titular nas finais da Liga Europa, da Taça da Liga, da Taça de Portugal e na Supertaça, o rendimento de Amorim valeu-lhe a ida ao Mundial 2014. Não foi uma chamada de emergência, como quando substituiu Nani na África do Sul, mas uma convocatória de pleno direito e mérito.

Ruben começava, até, a envergar, por vezes, a braçadeira de capitão do seu clube do coração. Até que a vida do médio que podia ser lateral mudou a 24 de agosto de 2014. No sintético do Bessa, Amorim sofreu uma rotura total do ligamento cruzado anterior do joelho direito, possivelmente a mais grave das diversas lesões que teve ao longo da carreira.

O melhor momento tornou-se, à meia-hora daquele jogo contra o Boavista, o pior momento. Não mais voltou a fazer um encontro a titular pelo Benfica, rumando ao Catar na época seguinte, onde só ficaria alguns meses. Um ano e algo depois do auge, a carreira concluía-se.

O inesperado fim trouxe a incerteza. O homem de 30 anos, retirado para jogar futebol e muito novo para a vida, sentiu o peso do momento. Para se precaver, Ruben pegou no computador e pôs-se a fazer contas.

Tinha um excel, juntamente com a minha mulher, com o dinheiro que tínhamos e as coisas de que precisávamos. Queria ajudar a minha família. Naquela altura, sentiu pressão, recorda, na série de entrevistas que tem dado aos órgãos de comunicação social ingleses durante a pré-época.

O técnico utiliza as memórias dos meses em que as suas perspetivas de vida mudaram para traçar o contraste com a situação que agora atravessa. No Manchester United, assegura, não se trata de pressão, é mais uma questão de ego. Há muito que queria treinar o United. Demorei cinco anos até escolher este clube e não quero falhar, comenta o português.

Ruben Amorim com Matheus Cunha, um dos reforços
Ruben Amorim com Matheus Cunha, um dos reforços Ash Donelon

Na cabeça de Ruben Amorim, estas seriam as suas primeiras semanas nos red devils. Quando o interesse surgiu, no outono de 2024, a intenção do então dono do banco do Sporting era terminar a época em Alvalade e, só depois, rumar a Inglaterra. Mas em Manchester queriam disponibilidade imediata, o comboio ia partir e o técnico apanhou-o em andamento.

Descontando os escassos meses no Catar, onde chegou fisicamente debilitado e não gostou da pouca competitividade do campeonato, Ruben Amorim, profissional de futebol há duas décadas, ia trabalhar, pela primeira vez, fora de Portugal. Só não era a primeira vez fora de Lisboa porque, entre Benfica, Belenenses, Sporting e Casa Pia, teve os períodos de SC Braga, quer como jogador, quer como treinador.

O impacto foi duro. Em 27 rondas na Premier League, o número de vitórias (sete) foi metade (14) da quantidade de derrotas, com seis empates pelo meio. O United terminou em 15.º, a pior classificação desde a criação da Premier League, em 1992.

No total, Amorim perdeu 16 dos 42 desafios pelo gigante de Old Trafford em 2024/25. Voltar a casa depois de tanto desaire era duro, claro, mas o pior não era o pós, diz Ruben à BBC, era o antes. Sentia e sabia, antes dos encontros, que íamos sofrer. Isso era o mais duro: ir para um jogo e saber que não seríamos competitivos. Isso é muito frustrante, confessa. A sensação terá atingido o auge nas semanas antes da final da Liga Europa, quando, para dar prioridade a vencer um troféu e apurar-se para a Liga dos Campeões, se optou por ir gerindo o plantel. Entre as meias-finais contra o Athletic e a final diante do Tottenham, o United perdeu rondas consecutivas diante de Brentford, West Ham e Chelsea. Nas últimas nove jornadas da Premier League, os red devils só somaram quatro pontos.

Sabia que não havia muito a fazer [nesses encontros]. Era esperar. E esperar, sendo treinador do Manchester United, era como ir para uma luta de braços atados, comparou ao The Athletic.

Os reforços e o grupo de líderes

Após o ano zero, Amorim entra no ano I. A primeira pré-época, poder moldar o plantel um pouco mais à sua imagem.

Tal como em 2020, antes da primeira época completa no Sporting, Ruben quis que quem não contava para a campanha treinasse separadamente. Assim, Jadon Sancho, Antony, Malacia e Garnacho não seguiram com o plantel para os trabalhos nos Estados Unidos e, em Inglaterra, exercitam-se a horas diferentes, aguardando que o mercado lhes traga soluções para prosseguirem a carreira.

Não satisfeito com o ambiente que reinava na época passada, o técnico insiste na importância de criar uma atmosfera de trabalho diferente. Passou a pré-temporada a falar em formar um elo de ligação entre todo o grupo, quer que haja mais cumplicidade, um tom mais próximo e familiar no quotidiano.

À semelhança do que queria ver feito no Sporting, num trabalho que tinha Hugo Viana como protagonista, Ruben Amorim quis que se fizesse uma investigação sobre o caráter de cada jogador que se queria contratar, tentando imaginar como é que encaixaria psicologicamente no plantel, apontou à Sky Sports. Foi esse estudo que, garante, foi feito com Matheus Cunha, Bryan Mbeumo e Benjamin Šeško, os três reforços para o ataque, todos na casa dos €75 milhões. Somando-lhes o jovem paraguaio Diego León, foram cerca de €229 milhões em reforços. Em toda a Europa, só Liverpool (€293 milhões) e Chelsea (€279 milhões) gastaram mais em aquisições, num top 10 em que só Real e Atlético de Madrid não estão na Premier League.

Amorim, Ferguson, o capitão Bruno, Jim Ratcliffe, dono de 28% do United, ou o CEO Omar Berrada na inauguração das novas instalações do centro de treinos
Amorim, Ferguson, o capitão Bruno, Jim Ratcliffe, dono de 28% do United, ou o CEO Omar Berrada na inauguração das novas instalações do centro de treinos Simon Peach - PA Images

Depois da derrota contra o Brighton, em janeiro, Ruben Amorim partiu uma televisão no balneário. Falando sobre o episódio com o The Athletic, o técnico apela a que os seus jogadores sejam um pouco mais emocionais. Com as emoções, tornamo-nos mais sacrificados, com mais energia. Estamos a melhorar nisso.

Durante os seus primeiros meses em Inglaterra, o sucessor de Ten Hag sentia que tinha de travar todas as batalhas. Farto dessa micro-gestão, e pretendendo concentrar-se no plano mais geral, foi nomeado um grupo de liderança, que terá as funções de ser uma espécie de extensão do treinador. Dele fazem parte Bruno Fernandes, Diogo Dalot, Lisandro Martínez, Tom Heaton e Mazraoui.

A maior parte das entrevistas foi dada em Chicago, onde os red devils assentaram arraiais durante alguns dias. A face de Amorim era mais leve do que no final da época passada, o sorriso de volta, a pele iluminada pelo sol norte-americano a dar um toque de cor a umas feições que, a dado momento de 2024/25, pareciam carregar o peso do mundo em cima de si. O ambiente, diz o treinador, é agora mais leve e saudável, escutam-se risos durante os treinos, os jogadores ficam no relvado depois das sessões, vão jantar juntos.

Gifs e remodelações

Apesar dos maus resultados, o escolhido para tentar mais um projeto de reerguer o gigante adormecido diz que nunca sentiu que a confiança que nele fora depositada se estivesse a esfumar. Lembrem-se de uma grande equipa que tenha perdido tantos jogos e, mesmo assim, mantivesse o treinador. Não vão encontrar. Isso significa mais do que palavras, prova que eles me apoiam, explica o homem de 40 anos.

A comunicação com Jim Ratcliffe, patrão da INEOS que detém 28% do clube, é boa, garante Amorim. Há, até, troca de gifs permanente, revela o treinador, que frequentemente pega em exemplos de Alvalade: Diziam que ia durar três meses no Sporting, diziam que tinha 3% de hipóteses de ganhar um título. Não gosto de mudar de clubes, gosto de criar ligações com as pessoas e continuar. Estava à espera do clube certo. Parece uma loucura, mas eu escolhi este clube. Até que não possa mais, estarei aqui, promete.

A reconstrução do United prosseguiu com um desejo que já fora manifestado por Ruben Amorim e, antes dele, por Cristiano Ronaldo. O centro de treinos de Carrington, há muito considerado obsoleto e criticado, sofreu uma remodelação, sendo reinaugurado pouco antes do pontapé de saída da Premier League, que verá logo jogo grande, com um United-Arsenal (domingo, 16h30, DAZN1) que é, também, um Gyökeres-Amorim. A reabertura do local de trabalhos surge na altura perfeita para simbolizar um recomeço, indica Ruben.

Para o ano I, o treinador quis reforçar várias áreas do clube que não estavam ao seu gosto. Entre contratações para os mais variados departamentos, houve recrutamento em Portugal, com Acácio Valentim, ex-SC Braga ou FC Porto, a entrar para gestor de operações da equipa, e Filipe Sousa, ex-Vitória SC ou Famalicão, a chegar para nutricionista. Melhorámos em todos os aspetos, até no que comemos, avalia o antigo internacional.

No ginásio que o United usou na pré-época em Chicago, com os arranha-céus ao fundo e muito calor a sentir-se, havia uma frase gigante na parede. GET BETTER, lia-se, um apelo à melhoria que sintetiza as intenções de Ruben Amorim. Há muito por crescer para quem ficou a 42 pontos do 1.º lugar.