
Um instante na primeira parte não é que o tenha resumido, longe disso, é antes uma questão de ter manifestado, com tamanha ostentação, a confiança sem pruridos que por estes dias move gaiato francês, tão jovem que desprovido de barba é ou de qualquer pilosidade facial: bem dentro dos 22 metros de França, bastante perto da sua área de ensaio e com a pressão irlandesa a invadi-lo, Louis Bielle-Biarrey olhou para o lado oposto do campo e casualmente decidiu passar a bola, com o pé, ao companheiro de equipa que mais longe estava dele.
Não serviu para progredir no campo, atacar as costas de alguém nas linhas atrasadas do adversário, nem para arrancar em perseguição do bem oval. Foi simplesmente isso, um passe.
O muito pouco convencional lance, que em nada resultou, valeu pela reduzida ortodoxia demonstrada por um jogador de 21 anos a competir apenas no seu segundo torneio das Seis Nações, em plena casa do râguebi irlandês, a seleção europeia com melhor ranking que no sábado jogava por manter vivas as esperanças de lograr um Grand Slam nesta edição da prova. Na sua calma e com o seu ato que foi um grande encolher de ombros perante a pressão do momento, Louis Bielle-Biarrey deixou outra prova do seu à-vontade nestes palcos. Mais uma, como se ainda necessitasse.
Não especialmente forte, nem particularmente musculado, o francês que sempre joga de capacete marcou dois ensaios à Irlanda, no sábado e em Dublin, no ruidoso Aviva Stadium: o primeiro de pouca elaboração, bastando-lhe esperar que Antoine Dupont o visse colado à linha lateral, à espera que o formação saltasse para lá um passe saído do ruck já perto da área de ensaio; o segundo mostrou o que corre no sangue de Bielle-Biarrey vai e o faz correr. Acabados de entrar na metade irlandesa, os franceses foram de um lado ao outro do campo por Damian Penaud, o outro ponta metido por dentro, que acelerou com a bola até a libertar no seu companheiro de clube para ele a receber e, no último instante antes de um adversário o poder placar, chutar a oval para a frente.
O 'Beep-Beep' gaulês então sprintou, ultrapassou o desesperado Sam Prendergast, médio de abertura da Irlanda que nada pôde contra o mergulho do ponta já na área de ensaio para reclamar o toque de meta.
Fora a velocidade de ponta estonteante, a agilidade com que Louis Bielle-Biarrey se esquiva de corpos e a facilidade com que, em sprint, pontapeia a bola para a caçar mais adiante - e assim impedir que adversários o possam placar - tem azucrinado o juízo aos rivais de França no Seis Nações. Em quatro partidas, o ponta do Bordeaux-Bègles leva quatro ensaios feitos e nunca um jogador gaulês fizera tantos numa edição do mais relevante torneio entre seleções europeias, que se disputa anualmente.
E tudo está a acontecer à lei da bala para Bielle-Biarrey, de tão-só 21 anos, se o ponto a considerar for a velocidade.
Filho de mãe da Ilha Reunião e de um pai francês continental, tendo nos genes um avô chinês, o esguio ponta foi contratado pelo Bordeaux-Bègles em 2022. Tinha 18 anos, idade em que se estreou como profissional e também na Liga dos Campeões, onde teve a sua primeira titularidade da carreira contra os ingleses dos Scarlets - fez logo um hat-trick de ensaios. No ano seguinte, uma chamada à seleção principal tornou-o o segundo jogador mais novo da história a ser convocado por França.
Estaria entre os 33 escolhidos por Fabien Galthié para o Campeonato do Mundo caseiro, onde tratou de mostrar a catrefada de cavalos de corrida que cabem no seu motor, deixando quatro ensaios no torneio, todos na fase de grupos, contra Uruguai, Namíbia e Itália. E um mês antes, na estreia pelos Les Bleus, também marcara um, frente à Escócia. Fê-lo com a humildade que aparentou ao reagir aos dois ensaios mais recentes que acrescentou à sua frutuosa contagem: "Recebi bolas boas para jogar. O meu trabalho é finalizar, é marcar ensaios. Tendo fazer o meu melhor."
Palavras simples de um imberbe homem que nada tem de simplicidade no que faz. Caso consiga um ensaio no derradeiro encontro deste Seis Nações, no próximo sábado (20h, Sport TV), iguala o feito de Philippe Bernat-Salles, lenda do râguebi gaulês e contemporâneo do atual selecionador, único a marcar em todos os jogos de uma edição da prova. Mas olhe-se para Louis Bielle-Biarrey e nada nele emana tamanha grandiosidade: o francês é magro, de membros finos, longe dos músculos e da massa volumosa que cobre a maioria dos corpos que se dedicam ao râguebi.
Depois, vejam-se os seus números: os sete ensaios que tem este torneio vieram de apenas 15 corridas efetivas com a bola. E vai com 17 marcados em 18 internacionalizações por França, o afortunado país que atravessa um chorudo período, pródigo em árvores cujos frutos que dão são jogadores de râguebi dos melhores que há no mundo.