Contra França, a grande potência do futebol de seleções da última década, campeã do mundo em 2018 e vice-campeã em 2022, equipa que não era derrotada em 90 minutos de um grande torneio desde 2014. Com Espanha a perder por 1-0, a sofrer com os contra-ataques gauleses, a ter de dar a volta contra uma equipa que não sofrera qualquer golo que não fosse de penálti nos 501 minutos anteriores.

Contra Maignan, um guarda-redes de elite, contra uma defesa com craques como Saliba, contra um meio-campo com lendas como Kanté. Contra Mbappé. Contra gigantes.

Nas meias-finais do Euro 2024. Para dar a volta ao ascendente emocional do jogo, para colocar Espanha psicologicamente por cima.

Tudo o que rodeou o que Lamine Yamal fez aos 21' acrescenta grandeza ao momento, atribui arte à obra de arte. Num duelo decido no Evereste da exigência, numa noite de Munique de tensão e emoção, foi um rapaz de 16 anos e 362 dias o adulto na sala. O maior entre maiores.

Jamais alguém desta idade marcara um golo num Europeu ou num Mundial. Olmo pegou na magia de Yamal e, três minutos depois, fez o 2-1. França, talvez pasmada com o impossível que representa um menino a jogar melhor que gigantes, pareceu atordoada no resto do desafio. Os espanhóis aguardam por Inglaterra ou Países Baixos no duelo de Berlim.

Não obstante as celebrações após a conclusão do jogo, a meia-final não poderia ter começado pior para Espanha. O grande problema contra França é ter de correr atrás do prejuízo, legitimar o plano de Deschmaps de defender-se atrás e esperar, dar espaços para o contra-ataque. A grande dúvida de la roja era o lado direito, a capacidade de Jesús Navas aguentar.

Pois bem, ainda nem 15 minutos haviam passado e já França vencia por 1-0 e Navas deixara de ser um lateral-direito de 38 anos a ter de lidar com Mbappé para tornar-se num lateral-direito de 38 anos a ter de lidar com Mbappé tendo um amarelo.

Os vice-campeões do mundo chegaram a Munique sem qualquer golo marcado por um jogador seu em bola corrida. Os três festejos foram ou de penálti (Mbappé contra a Polónia) ou auto-golos (frente a Áustria e Bélgica). Tal resolveu-se aos 9'.

Dembelé usou a sua ambidestria, a ambidestria mais ambidestra do futebol, para conduzir pela direita e servir Mbappé com a esquerda. O capitão, já sem máscara, teve tempo para olhar para a área e servir Kolo Muani, nascido Bondy tal como Kylian. Ao contrário do que sucedeu contra Dibu Martínez no Catar, o atacante não falhou. 1-0.

Os gauleses sentiam-se cómodos, em vantagem e esperando para sair. Navas travou Rabiot num contra-ataque e viu um amarelo, Mbappé fletiu da esquerda para o meio e viu Nacho evitar o seu disparo chegasse à baliza. Os 20' iniciais foram de França, Espanha parecia exposta, insegura, vulnerável à velocidade dos atacantes adversários como pouco se viu neste Europeu.

O 1-0 de Kolo Muani
O 1-0 de Kolo Muani Stu Forster/Getty

Até que um menino que está no secundário decidiu que o guião do desafio poderia ir por um lado, mas o resultado iria para outro.

Yamal recebeu à entrada do último terço. Bailou diante de Rabiot. Rematou, um tiro que primeiro subiu, subiu, mas subitamente desceu, como se alguém sussurrasse ordens à bola. Ela, obediente perante o talento, obedeceu. A estirada de Maignan só acrescentou estética ao momento.

O que era frágil tornou-se forte. A debilidade de Espanha transformou-se entusiasmo, voando nas asas de alguém que não pode beber, não pode fumar, não pode conduzir, mas pode ter este impacto numa cimeira de gigantes. No Euro 2036, quando sabe-se lá que invenções tecnológicas haverá, quando sabe-se lá em que mundo viveremos, Lamine Yamal ainda não terá 30 anos. Tudo isto, se fosse guião de filme de Hollywood, pareceria excessivo exercício de criatividade.

Embalado pelo golo do companheiro, Olmo juntou-se à arte. Desde que teve a oportunidade aberta pela lesão de Pedri contra a Alemanha, vai em dois golos e uma assistência. Tirou um adversário da frente com um toque de classe e rematou cruzado. 2-1 numa das últimas oportunidades de golo da noite em Munique.

O desvio de Koundé antes do 2-1
O desvio de Koundé antes do 2-1 Alex Grimm/Getty

Na segunda parte, Espanha deixou de ter baliza, como se houvesse um sentido proibido para lá da linha do meio-campo. Só Yamal, aos 81', voltou a ameaçar.

Jesús Navas, que em 2012 já participara na meia-final do Europeu da Polónia e Ucrânia, sucumbiu fisicamente e deu o seu lugar a Dani Vivian. Nacho passou para a direita e em breve teve de lidar com Barcola, uma das armas que Deschamps lançou para tentar o empate.

Também Camavinga, Griezmann e Giroud entraram, formando uma França cada vez mais virada para a frente. No entanto, sem muita criatividade e alta dependência das tentativas individuais dos seus extremos, o perigo só chegou em meias oportunidades, ameaças de Mbappé, Barcola, Upamecano ou Theo, esboços desgarrados que não pareciam contrariar a gestão que os espanhóis faziam da vantagem.

França caiu de forma tristonha, culminando um Europeu triste. Deschamps foi, neste torneio, mais Deschamps que nunca, mais conservador, amarrando mais a equipa. Mbappé teve uma última oportunidade. Driblou Vivian, mas atirou por cima, saindo de cena confirmando que esta não foi a sua competição.

Aquele não era o seu momento. Era o de Rodri e Fabián, do controlo, da circulação, de sofrer com bola. De não sofrer. Espanha foi para Berlim gerindo a vantagem em posse, terminando perto da área de Maignan, com controlo. Com Lamine a sorrir como uma criança depois de decidir como adulto no mundo dos gigantes. O mundo que já é dele.

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