Há desconfiança no ar. Uma delegação de norte-americanos vai pernoitar num hotel nas redondezas da Praça Vermelha. Por mais benignos que sejam os propósitos da sua presença no coração de Moscovo, está impedida de se instalar sem ser minuciosamente revistada pelo KGB. Os agentes põem-se a perscrutar a bagagem. Vasculham o molho de pertences vindos do outro lado da Cortina de Ferro. Desconhecendo-se as expectativas antes da intervenção se iniciar, não foi certamente com aquela busca que a Rússia sorveu influência aos Estados Unidos. Afinal, o resultado da operação foi uma edição da “Playboy” apreendida.

O nível de alerta das autoridades tornara-se máximo. Ou não. Talvez a vigia que se seguiu estivesse no protocolo para receber viajantes vindos do outro polo da Guerra Fria. É pouco provável que tenha sido apenas a concupiscência de um mero membro da comitiva a espoletar os seguintes atos. Gregg Popovich espreitava por cima do ombro e nunca se via sozinho. Fosse onde fosse, tinha sempre um agente à retaguarda.

Kevin C. Cox

Popovich era membro da Força Aérea norte-americana, formou-se em Estudos Soviéticos e sabia falar russo fluentemente. Especialista em inteligência militar, participou em missões de controlo de mísseis e gestão de satélites úteis para monitorizar o antagonista. O “San Antonio Express-News”, publicação que reuniu alguns episódios da carreira militar de Popovich na década de 70, rotula-o como espião, mas não “no sentido de James Bond”.

Naquela ida à União Soviética, nada mais ia fazer do que jogar basquetebol ao serviço da equipa que, em 1972, viajava pelo mundo a representar os Estados Unidos numa liga amadora. Não deixava de ser um espião, mas andava pelas ruas de Moscovo à paisana. Certo que esse é o conceito de espião, mas Popovich estava espiritualmente à paisana, sem intenções de desmascarar ninguém.

A enganchada relação entre os militares e as regras fez de Gregg Popovich um treinador exigente. Exigente, mas não estoico. Apenas um insano perfecionista que se tivesse que pedir um desconto de tempo aos 14 segundos pedia.

Treinar corações

Ao fim de 29 anos, Gregg Popovich deixou de ser treinador principal dos San Antonio Spurs. No final de 2024, o ex-técnico de 76 anos tinha já sofrido um “leve AVC”, comunicou a equipa. Desde aí, não voltou ao banco de suplentes. Três meses depois teve o primeiro encontro com os jogadores após o sucedido. Não foi propriamente algo que tenha ajudado a dissipar as dúvidas quanto à continuidade da carreira. Em abril de 2025, enquanto estava a jantar num restaurante, voltou a ter um novo incidente médico, sendo transportado para o hospital.

Julgava-se ser eterna aquela figura de ancião que vagueava pela linha lateral com ar de sábio, alguém a quem o universo propositadamente entregou conhecimento acima da média, condecorando a longevidade. Chegou a parecer mesmo que tinha raízes nos pés que o prendiam ao banco até ao fim dos tempos. Pode parecer fatalista, mas foi o que transmitiu alguém que nunca se mostrou particularmente interessado em saber como era a vida sem basquetebol. Talvez porque para Popovich eram a mesma coisa.

DeMar DeRozan não passou pelos Spurs nos tempos áureos da equipa texana, mas nem por isso deixou de ficar marcado. “O meu pai morreu quando estava a jogar em San Antonio. Estávamos presos em Charlotte e liguei ao diretor desportivo a dizer que tinha que ir para casa. Não queria que ninguém soubesse. 90 segundos depois, bateram à porta. Era o Pop. Sentou-se e chorou comigo durante duas horas. Não saiu enquanto eu não saí”, contou no podcast “The 25 10 Show”.

Mais tarde, com os Bulls, DeRozan regressaria a San Antonio. Nesse jogo, por coincidência, existia a hipótese de atingir os 20.000 pontos na NBA, tornando-se apenas no 50.º jogador a fazê-lo. A barreira acabou por ser ultrapassada e foi Popovich, treinador da equipa adversária, quem pediu um desconto de tempo para que DeRozan fosse congratulado.

Tim Nwachukwu

Gregg Popovich voltou a atravessar-se por um adversário quando Kawhi Leonard, campeão pelos Spurs em 2014, esteve de passagem pelo Texas com a camisola dos Clippers. Na temporada 2017-18, The Claw realizou apenas nove jogos (em 82). Supostamente, a razão eram problemas físicos, mas a demora na recuperação começou a causar estranheza. Entre os adeptos, os rumores de que Kawhi estaria a forçar uma troca não caíram bem. O duas vezes defensor do ano rumou aos Toronto Raptors, onde ganhou o campeonato na época seguinte. Já nos Clippers, as bancadas vaiaram Kawhi Leonard quando o jogador estava na linha de lance livre. Foi então que Popovich agarrou no microfone e, com a mensagem amplificada pelas colunas do pavilhão, disse: “Deixem estes rapazes jogar. Isso não tem classe e não é aquilo que nós somos.”

Espalhados pela liga estão vários discípulos de Popovich. No início desta época, quatro treinadores principais - Mike Budenholzer (Suns), Mike Brown (Kings), Ime Udoka (Rockets) e Will Hardy (Jazz) - compunham a lista daqueles que por ele foram tutorados. Foi para quem o ajudou o mesmo que era para os jogadores.

“Estava a passar por um período difícil de divórcio. A minha mulher morava no Colorado e eu estava em San Antonio”, começou por relembrar Mike Brown que estava a deixar os filhos de três e cinco anos no avião para que regressassem até junto da mãe. “Eles estavam a chorar e eu estava a chorar.” Ao mesmo tempo, os San Antonio Spurs também estavam de partida para uma semana de jogos longe de casa. Brown era o responsável pelo scout do primeiro jogo, contra os Bulls. “Mikey, se apareceres no nosso avião, ficas sem emprego. Vemos-te quando regressarmos”, respondeu Popovich. “O toque pessoal que ele tem com toda a gente é muito mais impactante do que o que ele fez pelo basquetebol.”

O fim de uma era

É possível que o amor às causas se meça por aquilo que os envolvidos na sua concretização exigem para o fazerem. Quando começou a trabalhar com Larry Brown, Popovich fê-lo de forma voluntária. Juntou-se ao mentor na Universidade de Kansas. Tinha a experiência de orientar equipas jovens na Força Aérea e, de seguida, testou-se na Universidade de Pomona-Pitzer, na Califórnia.

Em 1988, acompanhou Larry Brown e tornou-se treinador-adjunto dos Spurs. A chama não pegou de imediato. Antes de se edificar no Texas, foi assistente de Don Nelson nos Golden State Warriors. Quando regressou a San Antonio, fê-lo na condição de diretor-geral. Porém, a meio da época (1996-97), despediu o treinador que venceu apenas três jogos em 18 e contratou-se a si mesmo para o cargo de onde só viria a sair 29 anos depois.

A primeira época não foi fantástica. Popovich ganhou apenas 17 jogos em 64. A partir daí, nasceu a lenda que levou os Spurs aos playoffs durante 21 anos consecutivos (1998-2019). Nesse processo, Pop tornou-se no treinador com mais vitórias de sempre na fase regular (1.422), ajudando a transformar o basquetebol que encalhava uma quantidade infindável de gente na área pintada naquilo que conhecemos hoje em dia.

No ano seguinte à estreia como treinador principal, os Spurs escolheram Tim Duncan via Draft 1997. A peça transversal à era de Popovich referiu, no discurso de indução no Hall of Fame, que o sucesso do técnico esteve nos “padrões que estabelece” e deixou-lhe um agradecimento: “Obrigado por me teres ensinado acerca de basquetebol, mas além disso por me teres ensinado que não é tudo acerca de basquetebol.”

Sempre que necessário, Popovich mostrou-se à vontade para divulgar o seu posicionamento político. Enquanto esteve debaixo dos holofotes, bateu-se pela justiça racial e chegou a chamar “patético” e “chorão” a Donald Trump.

Oficialmente, ainda não está na altura de se reformar. Gregg Popovich vai continuar ligado aos Spurs na qualidade de presidente das operações de basquetebol. A saúde impôs-lhe um cargo que pode desempenhar sentado na secretária. No banco, vai ser sucedido por Mitch Johnson, a cara do franchise desde que o septuagenário se afastou.

Quando chegou a vez de Popovich ser também ele induzido no Hall of Fame, tinha consigo no palco quatro pessoas: David Robinson, Tim Duncan, Tony Parker e Manu Ginobili. No grupo de ex-jogadores operários do sucesso, apenas o segundo participou na conquista de todos os cinco títulos de Popovich (1999, 2003, 2005, 2007 e 2014).

Com um sentido de humor apurado, era frequente falar com a imprensa num tom irónico para tentar ser original nas respostas que teve que dar milhares de vezes. No fundo, nem ele próprio se levava demasiado a sério. “Eu tenho uma família.” Ao fim de quase 20 minutos do discurso proferido no Hall of Fame, encontrou espaço para os que lhe são geneticamente próximos. “As pessoas acham que só me dedico ao basquetebol, mas na verdade eu não gosto assim tanto de basquetebol. O basquetebol não nos ama de volta.” É hora de passar mais algum tempo a brincar com os netos.