
O rapaz farta-se de correr para trás, o contrário do para diante que mais lhe convém, antes foi canto para o FC Porto e sendo ele um dos pequenitos ficou alheio à área, a dar superioridade numérica, mas a bola dá em nada, sobra para terra de ninguém e o alguém que a recolhe é Miguel Reisinho, elegante canhoto do Boavista que dá uma chapada de passe que põe Bruno Onyemaechi a correr em perseguição da bola e as pequenas pernas do miúdo a sprintarem no seu encalço, apressado sem ser esbaforido, alerta mas a transpirar controlo, sem nervos a alcançá-lo e depois matreiro a bloquear-lhe as intenções depois de cobrir 30 metros de campo.
O socorro velocista contradiz, porque nada tem a ver, o que um treinador me disse antes do jogo que diria a Rodrigo Mora caso o treinasse, que seria algo como “amigo, tu não é para defenderes, é só fechares uma linha de passe aqui e ali e está feito”, mas este lance nunca o ilustraria por ser devido à cautela aprontada caso um canto ofensivo sobre para o adversário. Quando o adolescente fez o que lhe competia, as bancadas do Dragão responderam com o que sentem, em géneros de carinho: muitos aplausos, tantos que fizeram uma ovação cheia, a maior da primeira parte salvo uma.
Essa aconteceu aos 31’ e foi misturada com berros, saltos e afins quando Samu, embalado ao seu jeito nas costas de Abascal, o último defesa, respondeu com o pé, e um golo, à solicitação rasteira de Martim Fernandes, um cruzamento cortante do lateral direito lançado por Nico González, ele próprio uma faca quente a cortar manteiga no verão quando rompeu com a bola por entre a primeira linha de pressão do Boavista antes de soltar o passe. Pouco antes, gerada na mesma margem, já aparecera a melhor combinação de passes pré-intervalo até Martim tirar outra bola rasteira. Samu não rematou logo, preferiu tabelar com Pepê e ficar com demasiados corpos feitos muralha que o bloquearam quando o decidiu fazer.
O vapor do golo fez soltar a tampa a Samu, o avançado que perde alegres estribeiras sempre que marca, e libertou também os dragões das amarras que os agarravam à contrição, ao pé ante pé, ou quiçá à prudência. Entrou a bola na baliza e aproveitaram, por fim, o posicionamento de André Franco, partindo da direita mas sempre tão por dentro, para procurarem Martim Fernandes sem vergonhas, ele subido desse lado e a equipa a cavalgar na profundidade que fazia por dar. Das suas aventuras chegou outra bola, esta pelo ar, que Samu recebeu no peito e rematou sem acertar no alvo, e ainda outra em que foi o próprio aventureiro a ser negado pelo pé de César, o guarda-redes atolado em trabalhos.
Terá sido dos jogos em que o FC Porto mais se inclinou para a direita, com maior afinco, logo no que não teve Fábio Vieira, recentemente um titular repetente, mas que nem no banco de suplentes esteve.
O Boavista cerrara fileiras sem a bola, as suas linhas juntas e os jogadores próximos, ainda mais aproximados pelos beijos berrantes de Cristiano Bacci, o treinador que gritava indicações a uma equipa presa por proibições em contratar há várias janelas de transferências e que seria mais amordaçada pelo FC Porto na segunda parte, decidido a não esmorecer o ritmo e a achar, algures, o miúdo em campo, o rapaz sobre quem o tal treinador também dissera que “tudo o que ele dá ofensivamente compensa o que possa não dar do ponto de vista defensivo”.
Mas o que ele deu e daria eram pequenos salpiques, uns pormenores técnicos ternurentos, aqui e ali vistosos pela ousadia, mas inconsequentes no proveito. Rodrigo Mora andava algo escondido, a manter-se na linha de Samu, encostado à linha de defensiva sem orbitar nos bolsos de espaço gerados, a forçar em demasia as esporádicas ações que tinha com a bola no emaranhado de pernas a rodeá-lo. “Os jogadores da I Liga têm mais truques, mais manhas, conseguem desequilibrá-lo com um toque aqui e ali e fazem com que o gesto técnico não saia tão limpo” era outra verdade, por certo a maior delas, ditas por quem o viu pela primeira vez como um sub-14 a jogar nos sub-17, já lá vão os anos, mas dizendo respeito a um tempo que hoje a teoria diria ainda ser o dele.
Não na prática. Nessa prova de algodão, o adolescente da melena farta e algo ruiva, ainda de cara tão rapazola, já mostra o absurdo potencial quando a bola pára, um livre é batido curto, ele a recebe sem a vigilância de corpos nas redondezas, no ápice em que as diferenças de ritmo competitivo que lhe farão natural comichão estão suspensas por uns segundos. Nesse momento, Rodrigo Mora ajeitou na área a bola que Nico González só teve de encostar, aos 55’, para o segundo golo, provando o jeito que lhe é inato, com tiques de fenomenal até pelo que faria pouco depois, sem a bola ter de ficar quieta.
Teve o Boavista um lançamento lateral já com a área portista ao alcance. Tentou chegar-lhe e a tarefa saiu furada. Perdeu a posse, quis o FC Porto aproveitá-la rápido, puxou atrás a culatra do contra-ataque, acelerou e a transição veloz cedo encontrou os pés do pequenote, o “craque da cabeça aos pés” com “qualidade em todos os gestos técnicos” que provou ambas as frases ditas em previsão, falíveis até onde as profecias alcançam, mas a conhecerem no Dragão uma valente pitada de realidade.
Quando a jogada lhe chegou, Rodrigo Mora enfrentou o adversário enquanto gingou com a bola, primeiramente sem a tocar, apenas baloiçando o seu peso por entre as pernas, fingindo intenções, depois a fazer descarrilar quem o perseguia por abrandar, cortar para dentro; e com a enganadora aptidão de quem faz o simples parecer fácil, adornou um passe à baliza, pelo ar, apontado ao ângulo. Era a apoteose aos 59’, uma aterragem em cena do novo menino de todos os olhos no Dragão, com a boniteza dos imberbes ao levantar os braços, esbugalhar os olhos, pintar a cara de incredulidade e correr agora sim esbaforido, igual a Vítor Bruno, que saiu disparado do banco para se juntar à pirâmide de corpos construído para celebrar o feito do miúdo, em cima dele.
Cedo é para perspetivar que em breve, um, dois anos, toda uma equipa possa estar encimada em Rodrigo Mora, no seu talento, quando as suas danças forem constantes em vez de intermitentes, como a outra em que recebeu de Iván Jaime, parou, definiu a finta para dentro e devolveu ao espanhol para sair um remate a rasar o poste. Ou a das palavras joviais e jovens, um adolescente de microfone na mão, a falar para o estádio no final do jogo, a admitir “o sonho de criança” e a mandar “amanhã toda a gente às 11h aqui” para o treino aberto de final de ano do FC Porto. Isso seria quando terminado o jogo e feito o 4-0, após um canto trabalhado curto ser cruzado para Nehuén Pérez ajeitar a bola com que Samu voltou a marcar.
O bis do avançado, agora com 15 golos no campeonato, terá sido uma exibição maior do que a do miúdo. Foram certamente a de Nico González a ditar tudo e mais um pouco no meio-campo, ou a de Martim Fernandes a fazer o FC Porto sempre perigar pela direita, na profundidade e com os seus cruzamentos certeiros. Só que Rodrigo Mora beneficia de um talento inalcançável, porque do berço, a todos eles, mesmo que tudo ainda lhe falte na carreira e tanto haja por trilhar. “Vai depender da personalidade dele, como se vai moldar à forma como for lançado e o sucesso que for tendo”, confidenciava-me quem o admira e já treinou muitos miúdos e adultos para ter a benesse das comparações.
Chamou-lhe ainda fera, o carinhoso termo abusado no futebol. É o que Rodrigo Mora já parecer ser, uma fera a ameaçar explodir no FC Porto, que teve o segundo jogo seguido a titular, a marcar e a assistir. E também disse, prevendo no escuro, mas certo da sua profecia, que ele na próxima época “vai rebentar, mas rebentar a sério”. Esta noite, por enquanto, foi para rebentar no Dragão.