No clássico “A Montanha Mágica”, Thomas Mann descreve uma Europa em tensão, um continente onde o confronto entre tradição e progresso não é apenas dissonância filosófica, mas dilema existencial que molda destinos individuais e coletivos. Um século depois, a Alemanha parece reviver essa dicotomia, agora no campo político. O equilíbrio que durante décadas garantiu estabilidade à maior economia europeia está a desmoronar-se, substituído por uma fragmentação que compromete qualquer visão de longo prazo. As eleições de 2025 não trouxeram clareza nem esperança: a CDU (centro-direita) venceu, mas sem força para governar sozinha; o SPD caiu para um humilhante terceiro lugar, e a juventude alemã rejeitou os partidos tradicionais, procurando soluções radicais nos extremos do espectro político. Como pode um país continuar a liderar a Europa quando aqueles que deveriam carregar o seu futuro rejeitam o presente?
A CDU, sob a liderança de Friedrich Merz, obteve 28,5% dos votos e sagrou-se vencedora, mas esta vitória é ilusória. O partido não cresceu por mérito próprio, mas por exclusão de partes. A erosão do SPD, a ausência de uma alternativa viável ao centro e o receio do eleitorado mais conservador perante a ascensão da extrema-direita explicam o resultado. A CDU garantiu a vitória, mas não a legitimidade necessária para governar sem alianças. E esta dependência de coligações não é um detalhe menor: é o reflexo de uma política sem impulso, incapaz de mobilizar uma sociedade que já não se revê nos velhos paradigmas.
O SPD, outrora o pilar da social-democracia europeia, sofreu uma das piores derrotas da sua história. Com apenas 16,4% dos votos, caiu para terceiro lugar, sem rumo, sem identidade e sem um projeto que o diferencie dos seus adversários. O partido há muito que se encontra numa encruzilhada: incapaz de recuperar a sua base operária, abandonado pelos eleitores jovens e urbanos que procuram respostas noutras forças políticas, e preso a uma estratégia de sobrevivência que consiste apenas em formar coligações para se manter no poder. Entre a esquerda radical, que o acusa de traição ideológica, e o centro, onde a CDU lhe rouba espaço, o SPD encontra-se reduzido a um papel secundário, um espectador da transformação política alemã em vez de um protagonista.
Mas o verdadeiro dado alarmante destas eleições não é apenas a erosão dos partidos tradicionais. O que torna este momento particularmente crítico é o comportamento eleitoral da juventude alemã. Entre os 18 e os 24 anos, 47% dos eleitores escolheram partidos situados nos extremos – quer à direita, na AfD, quer à esquerda, na Aliança Sahra Wagenknecht (BSW) e no Die Linke (A Esquerda). Esta tendência não pode ser encarada como um fenómeno passageiro, mas como um sintoma de uma crise profunda. A geração mais nova, aquela que deveria projetar a Alemanha para o futuro, encontra-se alienada do presente.
O que explica esta rejeição? Primeiro, a falta de respostas concretas dos partidos tradicionais para os desafios estruturais que os jovens enfrentam. O custo insuportável da habitação, a precariedade laboral, o aumento das desigualdades e a sensação de que o crescimento económico já não garante mobilidade social criaram um ambiente de frustração e desconfiança. Em segundo lugar, a influência das redes sociais na formação política desta geração é inegável. A polarização alimentada pelos algoritmos digitais criou um espaço onde os discursos radicais prosperam, e a extrema-direita e a extrema-esquerda souberam adaptar-se rapidamente a esta nova realidade, apresentando soluções simplistas e diretas para problemas complexos. Por fim, há um sentimento generalizado de crise permanente. A juventude alemã cresceu entre sucessivas crises — a crise financeira de 2008, a pandemia, a instabilidade económica, a guerra na Ucrânia — e vê na política tradicional um sistema incapaz de resolver os desafios estruturais.
A grande questão que se impõe é: como pode a Alemanha continuar a liderar politicamente e economicamente a Europa quando a sua população jovem já não acredita no sistema que a colocou nessa posição de liderança? A CDU pode ter vencido, mas a fragmentação do Bundestag (câmara baixa do Parlamento) obriga a negociações difíceis e coligações frágeis, que provavelmente resultarão em mais anos de gestão inerte. O SPD, por sua vez, terá de decidir se ainda um propósito político ou se continuará a diluir-se em alianças oportunistas. O mais preocupante é que, independentemente da coligação que se formar, a oposição será dominada por um partido que desafia abertamente os valores democráticos da Alemanha.
A AfD, com 20,8% dos votos, tornou-se a segunda força política do país e, pior, o principal partido da oposição. Isto significa que qualquer Executivo que se forme terá de lidar com uma oposição populista, eurocética e profundamente hostil ao sistema, cada vez mais próxima de sectores nacionalistas e autoritários. A normalização da AfD através do voto popular representa um risco real para o futuro da Alemanha e da União Europeia. Se a CDU e o SPD não forem capazes de apresentar um Governo estável e eficaz, sendo aqui a palavra eficaz a grande questão, a AfD continuará a crescer e a consolidar-se como uma força capaz de desafiar o establishment alemão.
As eleições alemãs de 2025 não trouxeram estabilidade nem respostas claras. O que revelaram foi um país dividido, onde os partidos tradicionais perdem força, os extremos crescem e os jovens se sentem órfãos de representação. A formação de um Governo será tarefa difícil, mas o verdadeiro desafio será outro: impedir que o descontentamento desta nova geração se transforme numa rejeição total da democracia liberal. Se a Alemanha quiser continuar a ser a âncora política e económica da Europa, terá de resolver um problema fundamental: reconquistar a sua juventude. Sem isso, não há projeto europeu que sobreviva.
De toda a forma, existe um dado importante de assinalar, a velha CDU de Merkel morreu. O partido que durante anos governou pelo consenso, apostando numa política de estabilidade e pragmatismo centrista, deu lugar a uma CDU mais à direita, moldada pela liderança assertiva de Friedrich Merz. Este não quer apenas ser chanceler da Alemanha; ambiciona ser o novo líder da Europa, ocupando o espaço deixado vago por uma União Europeia sem rumo e sem figuras políticas capazes de enfrentar os desafios do presente.
Enquanto os restantes dirigentes europeus hesitam, presos a compromissos internos e a uma falta de visão estratégica, Merz avança. As suas primeiras palavras revelam essa vontade de afirmação: compromisso reforçado com o rearmamento da Alemanha, defesa de uma política externa mais assertiva face à Rússia e um discurso pró-europeu que se desvia do idealismo brando das últimas décadas para adotar um realismo geopolítico sem complexos. Merz sabe que, num momento de fraqueza institucional na União Europeia, quem tiver coragem e determinação para assumir o comando acabará por definir o futuro do continente. E está disposto a fazê-lo.