Deitados no chão, acometidos por vómitos, os pacientes pedem ajuda no Centro de Tratamento de Cólera do Hospital de Al-Fao, no estado de Gedaref, na região Leste do Sudão. Mesmo dotada de 150 camas, aquela ala já não tem espaço suficiente – está lotada com outros pacientes com cólera, e os médicos e paramédicos têm de atender também outras pessoas doentes que colapsam nos corredores e no exterior do hospital.
A certa altura, profissionais médicos e de enfermagem tiveram de ficar de pé junto aos pacientes, a segurarem nas mãos os sacos de fluido intravenoso, porque não havia mais suportes para administração intravenosa disponíveis. Simultaneamente, pessoal não médico, das equipas da Médicos Sem Fronteiras (MSF) e do Ministério da Saúde sudanês, e até acompanhantes dos pacientes, acorriam a ajudar, distribuindo sais de reidratação oral numa corrida contra o tempo, para reidratar os doentes rapidamente e salvar-lhes a vida.
Um rapaz sentado ao lado da mãe, a qual tinha cólera, não consegue compreender o que se passa. Ele abana-a levemente, pensado que a mãe está a dormir, mas ela não dorme – ela tinha morrido. O choque da morte dela deixa-o em silêncio por um momento, antes de a dor o dominar e as lágrimas lhe caírem pela cara.
Ali perto, um outro paciente, que mostrara breves sinais de melhoria depois de receber líquidos, começou a desfalecer. Apesar de todos os esforços feitos pela equipa médica para o reidratar, a resposta do organismo foi demasiado fraca. Os médicos explicaram que as suas artérias estavam tão secas que nem os fluidos o conseguiram reanimar.
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As dedicadas equipas médicas e de enfermagem, e todo o restante staff no Centro de Tratamento de Cólera (CTC) no Hospital de Al-Fao – da MSF e do Ministério da Saúde – trabalhavam incansavelmente, fazendo todos os possíveis para salvar vidas em condições tão difíceis e repletas de desafios. Ao calor intenso, ainda pior envergando as batas e aventais, e as luvas médicas que os encharcam de suor, soma-se a falta das provisões necessárias e ruturas nos abastecimentos.
“Mesmo tendo visto muitas mortes como médica, é sempre extremamente difícil testemunhar uma”, frisa a médica da MSF Asma Abbas. “Fica-nos sempre um sentido de culpa, questionamo-nos ‘fiz o suficiente para salvar esta vida? Poderia ter feito algo diferente para o evitar?’”
Necessidades crescentes com a eclosão do conflito
O país está mergulhado em turbulência desde a eclosão do conflito em abril de 2023. Milhares de pessoas perderam a vida e milhões de outras foram forçadas a deslocar-se, tendo de fugir de casa e procurar refúgio em outras partes do Sudão e noutros países.
No meio do caos, a MSF adaptou as operações que desenvolve no Sudão para dar resposta às crescentes necessidades humanitárias. As equipas da organização estão a prestar apoio em instalações de saúde que foram danificadas pela guerra e ativaram clínicas móveis. A MSF trabalha atualmente em 11 dos 18 estados do Sudão, gerindo e apoiando estruturas de saúde e providenciando respostas de emergência a curto prazo conforme as necessidades surgem – como é o caso da assistência dada ao CTC do Hospital de Al-Fao, que é gerido pelo Ministério da Saúde sudanês.
A MSF continua também a prestar tratamento a pacientes no CTC que gere na cidade de Gedaref, o qual foi ativado durante o primeiro surto de cólera que atingiu a região. Esta instalação foi ampliada para uma capacidade de 60 camas e aumentou-se o número de pontos de reidratação oral, de forma a que as pessoas tenham acesso a água segura.
A organização médica-humanitária mantém igualmente a prestação de cuidados a pacientes com cólera no CTC de Tandedba. E providencia apoio no tratamento de cólera na cidade de Kassala e em Nova Halfa, igualmente no estado de Kassala.
No estado de Gedaref, como em todo o Sudão, as consequências do conflito em curso têm sido devastadoras. Mais recentemente, os combates travados no estado de Al-Jazirah forçaram centenas de milhares de pessoas a deslocar-se em direção a Gedaref. Para muitas destas pessoas, não foi sequer a primeira vez em que tiveram de escapar-se de um lugar onde tinham encontrado abrigo depois de já antes terem tido de fugir da violência.
Salman al-Taha, um homem na casa dos 40 anos e oriundo de Al-Jazirah, contou como, em apenas um ano, teve de partir de quatro casas diferentes em três cidades. A agitação constante causada pelas deslocações faz com que ele, e muitas outras pessoas no Sudão, se sintam em permanente instabilidade, sem nenhuma sensação de segurança.
Afra Salah, com cerca de 20 anos, recordou, por seu lado, as experiências terríveis pelas quais passou ao ter de se deslocar de um sítio para outro. Foi assaltada uma vez, viu o pai ser espancado por homens armados e, numa outra ocasião, teve de subornar um grupo de homens armados apenas para que a deixassem mudar-se para um local mais seguro. E tudo isto ao mesmo tempo que enfrentava uma grave escassez de comida e de água.
Estas terríveis circunstâncias são comuns para muitas pessoas no Sudão em guerra. Uma outra mulher desabafou às equipas da MSF:“Se isto é vida, pergunto-me o que é o inferno.”
Comunidades deslocadas em enorme risco nos surtos de doenças
Fugir da violência e enfrentar deslocações perigosas não traz nenhuma segurança às pessoas em todo o Sudão. Em Gedaref, como noutras zonas do país, as comunidades deslocadas veem-se forçadas a viver em condições de sobrelotação, sem abrigos adequados, nem água segura para beber, e sem instalações apropriadas de saneamento e higiene. Um surto de cólera que atingiu recentemente esta região começou entretanto a diminuir, mas o novo fluxo de pessoas deslocadas para Gedaref levou à ressurgência e propagação da doença na população.
O atual surto de cólera está a afetar especialmente as pessoas deslocadas com uma transmissão de pessoa a pessoa, conforme os deslocados fogem da violência em largos números. Este surto é agravado pela falta de acesso a água segura e a saneamento básico das pessoas que estão já em condições de enorme vulnerabilidade devido às longas deslocações que tiveram de fazer e se encontram, por isso, em maior risco de sofrerem desidratação grave associada à cólera.
Este é um fator que está a resultar em mais elevadas taxas de mortalidade (de 4,5 por cento) do que seria tipicamente esperado num surto de cólera (de menos de 2 por cento). No CTC onde as equipas da MSF prestam apoio no Hospital de Al-Fao, morreram 70 pacientes só em novembro, de entre 1 549 doentes com cólera admitidos.
Para aliviar a carga no CTC de Al-Fao e providenciar ajuda mais próxima dos locais de maior risco de transmissão da doença, equipas da organização médica-humanitária lançaram simultaneamente atividades de resposta à cólera a nível comunitário. Foram instalados pontos de reidratação oral em dois locais perto do hospital onde as pessoas deslocadas se instalaram – em Harira e em Al-Boudra –, assim como numa aldeia nas proximidades. A MSF deu formação e incentivou voluntários e doou provisões médicas essenciais, além de fazer distribuição de água segura.
Pelos finais de novembro e início de dezembro de 2024, eram menos as pessoas que chegavam a Al-Fao, verificando-se também uma baixa nas admissões diárias no CTC para números de quase só um dígito. Com a passagem da gestão total do CTC ao Ministério da Saúde, ainda em dezembro, a MSF manterá a entrega de provisões para que esta instalação possa continuar a prestar tratamento aos pacientes. Ao mesmo tempo, continuará a ser reforçado o aprovisionamento de água segura nos locais onde se encontram as comunidades deslocadas, pela MSF e outras entidades.
A organização médica-humanitária definiu prioridades em fazer com que staff, provisões e recursos estejam disponíveis para fazer frente às fases mais agudas das emergências. E dado que o nível de violência e das enormes necessidades no Sudão não dão quaisquer sinais de diminuição, o acesso a serviços de saúde vai continuar a ser levado ao limite, com emergências tristemente previsíveis.