Os vários grupos que se uniram para derrotar Bashar al-Assad na Síria estavam há mais um ano em preparações, e a coordenação entre todos foi um vetor central do sucesso da operação. Na primeira entrevista a um meio de comunicação ocidental, Abu Hassan al-Hamwi, chefe da ala militar do Hayat Tahrir al-Sham (HTS), contou a “The Guardian” como tudo aconteceu. Do lado de quem viu as notícias a desenrolarem-se como um novelo, a sensação foi que tudo aconteceu de forma muito rápida mas a coordenação com os rebeldes do sul, sendo o HTS uma força concentrada no noroeste, demorou anos a organizar-se, segundo al-Hamwi.
O início da história fixa-se em 2019, ainda antes do acordo de cessar-fogo que a Turquia conseguiu acordar com a Rússia e com o regime sírio e que permitiu a todos os rebeldes uma passagem segura até à província de Idlib, no noroeste da Síria, onde o HTS começa a sua metamorfose de grupo indisciplinado e descoordenado de jiadistas sem objetivo para uma força de combate disciplinada. “Após a última campanha [agosto de 2019], durante a qual perdemos um território significativo, todas as facções revolucionárias perceberam o perigo crítico - o problema fundamental era a ausência de liderança unificada e controle sobre a batalha”, disse ao diário britânico al-Hamwi, 40 anos, que supervisiona a ala militar do HTS há cinco anos.
Em Idlib, o HTS começou por oferecer a estabilidade possível a quem era agora obrigado a viver deslocado, criando algumas infraestruturas de saúde e saneamento, centros de saúde e mercados. E nesse clima relativamente estável começou a recrutar entre os vários grupos que tinham acabado ali acantonados, um plano que foi gradualmente alargando as fileiras do HTS. Na batalha contra os islâmicos mais radicais do Hurras al-Din, afiliado da Al-Qaeda, o HTS venceu e tornou-se o grupo rebelde dominante. “Estudámos o inimigo a fundo, analisando as suas tácticas, tanto de dia como de noite, e utilizámos esses conhecimentos para desenvolver as nossas próprias forças”, explicou o militar. Foram criados ramos militares, unidades e forças de segurança.
Um segundo ponto da estratégia foi começar a produzir o seu próprio armamento. Não seria fácil voltar a lutar contra a Rússia e o Irão, os dois aliados de Bashar al-Assad que lhe tinham garantido a primeira vitória. Na altura, ninguém sabia ainda que nem a Rússia nem o Irão estariam assim tão presentes desta vez.
Foi criada uma unidade de drones, reunindo engenheiros, mecânicos e químicos. “Unificámos os conhecimentos e definimos objetivos claros: precisávamos de drones de reconhecimento, drones de ataque e drones suicidas, com foco no alcance e na resistência”, disse al-Hamwi, acrescentando que a produção de drones começou em 2019. Demorou tempo. O drone Shahin, de produção local, foi utilizado pela primeira vez contra as forças do regime este mês, portanto cinco anos depois, mas com uma eficácia devastadora, especialmente porque ninguém sabia que os rebeldes tinham esta capacidade. Veículos militares de artilharia fiel ao regime foram desactivados por drones.
Os rebeldes do sul, muitos exilados na Jordânia, regressaram clandestinamente e criaram, com a ajuda do HTS, uma sala de operações, onde passaram a reunir com frequência os responsáveis de 25 grupos diferentes. Os rebeldes do norte e os do sul passaram a encontrar-se perto da capital.
Quando a Rússia invadiu a Ucrânia, abriu-se uma primeira fenda de luz no plano do HTS mas depois do 7 de outubro, quando Israel começou a guerra contra o Hamas, o Hezbollah e, por extensão, o Irão, os rebeldes souberam que mais mês menos mês, também o Irão iria ter mais em que pensar e a Síria ficaria no espelho retrovisor de ambas as potências pró-Assad.
A Rússia, que fornecia a maior parte do apoio aéreo, estava atolada na Ucrânia. O Irão e o Hezbollah, cujos combatentes eram as tropas terrestres mais ferozes de Assad, estavam a recuperar da sua luta com Israel.
Alepo, no norte, seria sempre a cidade mais difícil, pelo menos era isso que os rebeldes antecipavam. Mas não foi. Assad tinha demorado quatro anos para a reconquistar, e só quebrou os rebeldes depois de impor um cerco inclemente à cidade, impedindo qualquer ajuda médica, comida e água de entrarem. Mas não foi difícil, Alepo caiu e depois todas as cidades a seguir foram tomadas com facilidade.
Agora as minorias religiosas receiam que o grupo islamista possa impor o seu próprio dogma. “Todas as minorias na Síria fazem parte da nação e têm o direito de praticar os seus rituais, educação e serviços. O regime plantou a divisão e nós estamos a tentar, tanto quanto possível, ultrapassar essas divisões”, afirmou al-Hamwi.