
Os primeiros meses de 2025 foram marcados por processos judiciais de enorme repercussão mediática — a Operação Marquês, o caso BES, a polémica da “grávida da Murtosa” e o processo dos Anjos.
Todos eles têm um traço comum: o julgamento público antecipado, à margem dos autos, que se impôs sobre o tempo e o rigor da Justiça.
É neste desequilíbrio entre o que se discute nos media e o que se apura em tribunal que se joga, hoje, uma parte decisiva da credibilidade do nosso sistema judicial.
O tempo da Justiça e o tempo mediático
Na Operação Marquês, apenas agora em julgamento após mais de uma década de investigações, José Sócrates enfrenta acusações graves — corrupção, fraude fiscal qualificada e branqueamento.
No entanto, o veredicto mediático foi proferido há muito. O mesmo se pode dizer do caso BES, onde o escrutínio sobre Ricardo Salgado alimentou durante anos a opinião pública, muito antes de qualquer sentença.
Casos como o da “grávida da Murtosa”, com a absolvição de Fernando Valente, ou o processo dos Anjos, que tomou dimensões desproporcionais em plataformas digitais, refletem uma nova lógica: os media não se limitam a informar, mas prescrevem culpa ou inocência com base em fragmentos, suposições ou indignações momentâneas.
Este fenómeno alimenta um clima tóxico onde a presunção de inocência é esquecida e o contraditório ignorado. E quando o desfecho judicial não corresponde à narrativa já instalada, instala-se a frustração e aumenta a descrença.
Erosão de confiança e risco para o Estado de Direito
O impacto é profundo. A perceção de que os tribunais não acompanham a ‘opinião dominante’ gera a noção de impunidade. Frases como “a justiça não funciona” tornam-se comuns e perigosamente generalizadas.
No caso da Operação Marquês, a gravidade vai mais longe. Porque está em causa não apenas um arguido, mas a confiança dos portugueses nas instituições democráticas.
Se este processo falhar — pela forma como é conduzido, pelo tempo excessivo ou por uma decisão mal compreendida — será a própria legitimidade do Estado de direito a ser posta em causa. E há riscos que nenhum regime democrático pode permitir-se correr.
Importa ter consciência de que estes casos são excecionais. A esmagadora maioria dos processos judiciais — os que afetam cidadãos anónimos, empresas, famílias — resolvem-se longe do ruído mediático. Esses processos, embora invisíveis para o grande público, são a verdadeira coluna vertebral da Justiça portuguesa.
Justiça que sabe comunicar, para melhor se afirmar
Mesmo assim, há um desafio que o sistema judicial não pode continuar a ignorar: a necessidade de comunicar melhor. A Justiça não deve ceder ao populismo judicial, mas não pode continuar a “falar” apenas por sentenças difíceis de interpretar.
Explicar o que está em causa num julgamento, os tempos envolvidos, as razões das decisões interlocutórias ou os fundamentos das garantias processuais não é espetáculo — é pedagogia democrática. É prevenir o ruído, preservando a autoridade das instituições.
A reforma da Justiça passará sempre pela melhoria de meios, formação e recursos. Mas deve também implicar coragem para resistir à tendência do julgamento instantâneo e compromisso com os valores estruturantes do sistema judicial: imparcialidade, presunção de inocência, contraditório e decisão fundada na prova.
A Justiça não é — nem pode ser — espetáculo.
Mas também não pode ser silêncio.
Numa época em que a confiança é um recurso escasso, saber comunicar é, também, um ato de Justiça.