
Em muitas aldeias portuguesas, há mais portas fechadas do que vozes no largo. Mais campas novas do que berços. E mais silêncio do que Estado. O país fala do êxodo rural como se fosse um destino, mas ele é, na realidade, o sintoma mais visível de uma ausência: a ausência de visão para o território. Em 2024, centenas de freguesias portuguesas não registaram qualquer nascimento. E em seis décadas, Portugal passou de mais de 200 mil nascimentos por ano para apenas 84 mil. Aqui, o silêncio não é poético: é demográfico.
Enquanto se discutem milhões em Bruxelas e reformas em Lisboa, há freguesias a apagar-se em câmara lenta. Essa extinção não se dá num instante, acontece aos poucos, nos detalhes do quotidiano. Sem transportes, sem médicos, sem sinal, sem futuro. Lugares onde já não há escola, nem café, nem sequer autocarros. Onde o Estado chega por um papel, mas não fica por um serviço. Onde ainda se vive por teimosia, por memória ou por fé. Mesmo quando tudo à volta convida ao abandono. Nas últimas décadas, as zonas mais interiores de Portugal perderam entre 14% e 18% da população. E o resultado vê-se no terreno: sem pessoas, encerram-se escolas, postos médicos e serviços. E é nesses vazios que o Estado desaparece.
Apesar disso, continuam a ser estes territórios os que mais resistem e sustentam o rosto da democracia de proximidade. Fala‑se muito de coesão territorial, mas continua‑se a governar como se o ‘interior’ fosse um eco longínquo. Portugal não é só Lisboa, mas continua a ser governado como se fosse. As freguesias são tratadas como rodapés administrativos, quando deviam ser o início de tudo. Talvez o que esteja a desaparecer não seja só gente: é a confiança no Estado.
Durante décadas, o debate sobre o território oscilou entre dois extremos: por um lado, discursos líricos sobre a ruralidade; por outro, reformas administrativas feitas a régua e esquadro, que ignoram o tecido humano. Há, porém, uma terceira via mais exigente, mas mais transformadora: dotar as freguesias de meios, liberdade e autonomia para deixarem de ser órgãos assistencialistas e se tornarem núcleos de inovação democrática, social e territorial.
Em Portugal, mais de 1.200 freguesias têm menos de 500 habitantes. Demasiadas não têm multibanco, transporte público, cobertura de rede móvel, saneamento básico ou fibra óptica. E, no entanto, é nesses lugares que a política ainda tem nome próprio. Ali, uma decisão da junta pode ser a diferença entre o abandono e a permanência. Decidir manter um café aberto, arranjar um caminho ou criar uma actividade pode ser determinante. A junta não é uma formalidade: é, muitas vezes, o primeiro e o único rosto do Estado. Foi isso que aprendi nos últimos quatro anos, enquanto servia como secretário de uma freguesia do interior com menos de 300 habitantes. Por cá não se faz política para impressionar, faz-se para resolver e sobreviver. E ali percebi que as freguesias não estão condenadas ao declínio. Pelo contrário: podem ser o ensaio de um país mais justo, inovador e criativo.
Mas o que significa, hoje, inovar numa freguesia? Inovar não é aplicar fórmulas alheias ao território. É pegar no que ele tem de mais autêntico: nos produtos locais, nos saberes antigos, nas tradições vivas e até nas fragilidades herdadas e reconfigurá-lo como vantagem no século XXI. A freguesia deve ser mais do que um balcão de papelada: deve ser um laboratório de cidadania, um lugar onde a cultura se faz com os pés na terra e a inovação com os olhos no mundo. A inovação, nestes contextos, não se resume a tecnologia importada. Pode nascer numa antiga oficina transformada em espaço de aprendizagem, ou num agricultor que ensina técnicas ancestrais de cultivo regenerativo. Não é preciso reinventar a roda. É preciso dar-lhe tracção onde ela nunca chegou.
Inovar significa também ir além da rotina dos pequenos serviços e assumir um papel estratégico: na fixação de população, na captação de investimento, na regeneração cultural e na criação de redes de proximidade. Significa deixar de gerir o abandono com dignidade e começar a redesenhar o futuro com ambição.
E há bons exemplos. No Fundão, o investimento em reabilitação urbana, empreendedorismo jovem e cultura digital revitalizou a cidade e aldeias vizinhas. Projectos como o Fab Lab ou o Centro para as Migrações mostram que o interior pode ser vanguarda desde que haja vontade política e visão. Também há freguesias (como a minha) que criaram coworkings rurais; outras têm mercados locais, residências artísticas ou orçamentos participativos com meios mínimos, mas um compromisso máximo. A ousadia e o risco existem. Falta é o investimento político para os escalar.
Esse investimento deve começar por um novo olhar estratégico. Pensar estrategicamente o papel das freguesias passa, no mínimo, por: habitação acessível e mobilidade flexível, com reabilitação leve e transporte à medida; captação de talento e novas famílias, com acesso digital, programas de fixação e acolhimento activo; cultura e memória como motor económico, através de turismo criativo e saberes tradicionais; governação colaborativa, com mais competências, transparência e envolvimento cívico real.
E é importante dizê-lo com clareza: investir na fixação de uma família numa freguesia do interior pode custar menos ao Estado do que mantê-la dependente num contexto urbano sobrecarregado. A proximidade não é só uma urgência democrática. É também uma solução económica.
Nenhuma estratégia estará completa sem garantir que há quem possa continuar o território. Afinal, sem infância e sem jovens, é um território em contagem decrescente. Mas não basta garantir que os jovens fiquem. É preciso que tenham razões para ficar: escolas e creches acessíveis, espaços de aprendizagem contínua, estímulo à criatividade, ferramentas digitais, acesso à cultura e participação cívica real. Quando se fecha uma escola primária ou até mesmo um jardim de infância, fecha-se um futuro. Quando se desvaloriza a cultura local ou se adia a inovação por falta de escala, apaga-se o impulso vital que podia transformar o território. As freguesias precisam de ser lugares onde as novas gerações possam (como em qualquer cidade) viver, aprender, criar e transformar.
Depois, há também aqueles que partiram, mas nunca deixaram verdadeiramente de sentir a terra. Reconhecer a diáspora como parte viva da freguesia, com benefícios em eventos, programas de investimento, uso de casas devolutas ou apoio ao regresso. Há freguesias com mais vida fora do país do que dentro. Ignorar isso é desperdiçar não só memória, mas também possibilidades.
Para lá da escala individual, importa fomentar o trabalho em rede. Tal como os municípios se organizam em comunidades intermunicipais, também as freguesias podem cooperar entre si, criando “comunidades interfreguesias” para responder a desafios partilhados. Na mobilidade, no ambiente, na cultura, no ordenamento do território ou nos serviços básicos. Redes horizontais que somam competências e recursos, em vez de concentrar decisões num centro longínquo.
É verdade que nem todas as juntas funcionam bem. Há lugares marcados por inércia ou clientelismo, mas isso não invalida o seu potencial, apenas reforça a urgência de o desbloquear com mais exigência, mais capacitação e mais escrutínio. E embora o foco deste texto esteja nos territórios de baixa densidade populacional, o princípio é transversal: os desafios são diferentes, mas a escala de proximidade é essencial tanto nas aldeias como nas freguesias urbanas, onde também se vive exclusão, envelhecimento e desagregação cívica.
Além disso, hoje, a lógica das trincheiras ideológicas já não serve os territórios. O país não precisa de mais “punhos cerrados” contra “chaminés”, nem de estruturas concelhias que tentam encaixar comunidades vivas em moldes partidários fossilizados. O que hoje mobiliza as pessoas, nas suas localidades, são projectos agregadores, com abertura, pragmatismo e propósito. Em muitas terras, são os movimentos locais, formais ou informais, que estão a travar a decadência, ultrapassando as dicotomias do costume e pondo a freguesia à frente da sigla. E isso, permitam-me o arrojo, é bom para a democracia. Porque governar bem localmente não é apagar as ideologias, é saber que elas servem para orientar o país, e não para o fraccionar freguesia a freguesia.
O futuro da política começa onde a vida começa: na proximidade. Nas freguesias que não servem apenas para remediar o abandono, mas para redesenhar o futuro. Onde se pode inovar sem deixar ninguém para trás. E cada vez que uma freguesia se levanta, quero (muito) acreditar que Portugal reencontra um pedaço de si mesmo e talvez, nesse gesto, transforme o silêncio em voz e as portas fechadas em esperança.