Uma entrevista recente ao escritor francês Édouard Louis no programa «Roda Viva»[1], pôs-me a pensar sobre o que é isto de se ser um trânsfuga de classe. Para quem cresceu sem privilégios de ordem económica, geográfica e cultural, querer ser escritor e pertencer a um determinado meio erudito, como é o caso do autor francês, é uma ambição que nunca se irá concretizar totalmente porque, por mais prestígio que o trabalho do autor possa obter, o próprio será sempre visto como um trânsfuga de classe. Por um lado, inadequado para a classe que o pode acolher, por outro, rejeitado pela classe na qual nasceu e cresceu.

Em 1996, lembro-me de ir ver os resultados de colocação para a universidade afixados numa escola em Setúbal e de ficar em êxtase porque tinha conseguido algo de inédito na minha família — entrar na faculdade. Também me recordo de ter ido como uma seta, assim que vi o meu nome completo corresponder à universidade que tinha sido a minha primeira opção, à procura de um café para ligar para casa. Lembro-me do plim metálico do telefone preto de discar quando o pousaram em cima do balcão de inox e de porem a contar o tempo da chamada. Um telefonema mais breve do que esperei para comunicar uma novidade que pensei trazer alegria à família. Porém, a reacção que obtive ecoa fria até aos dias de hoje. A resposta do outro lado da linha chegou num tom pálido, claramente de interesse e ironia: «Ah, é desta que vais ser doutora.»

Esta situação veio-me à memória quando me deparei com a entrevista do escritor francês — sabendo que é transversal às várias áreas profissionais, o preconceito inevitável de querer ascender a outro meio social. No livro Para Acabar de Vez com Eddy Bellegueule[2], uma extraordinária obra autobiográfica, o autor assume as dificuldades do seu crescimento, revelando níveis de pobreza, de violência na família e na escola durante a infância e adolescência; o desenvolvimento precário privado de condições económicas, de atenção e de afecto, o bullying[3] devido à feminilidade inata que não conseguia contrariar e à orientação sexual que decepcionava familiares e irava os colegas de escola. O autor revela como isso contribui para ainda hoje, apesar do sucesso literário, se sentir inadequado quando convive com os seus pares. Édouard confessa que precisou de vários anos para compreender que o seu discurso de adulto não era incoerente ou contraditório, mas que trazia consigo uma espécie de arrogância de trânsfuga porque se tinha construído contra os seus pais, contra a sua família. E relembra a mãe, por exemplo, como também sentia que uma multiplicidade de discursos a atravessavam, que era constantemente dividida entre a vergonha de não ter estudado e o orgulho de apesar de tudo, ter-se safado e ter tido uns filhos lindos.

Subscrevo o autor quando refere que, sociologicamente, a literatura — a maioria dos autores e dos leitores — provém de ambientes privilegiados, de classes favorecidas. Basta pensarmos em grandes escritores como Proust, Tolstói, Virginia Woolf, entre tantos outros. Se é verdade que criaram obras excelentes, também é perceptível que estas nasceram de um sítio diferente das obras de um autor que cresce sem privilégios e em que o esforço tem de ser contínuo para se conquistar um lugar num meio como a literatura e de fazer ouvir a sua voz.

Édouard lamenta, como todos os escritores nascidos em famílias pobres e iletradas, não ter recebido alguma tradição literária, ter crescido num sítio onde não havia livros e ter sido criticado por ler, uma vez que isso soava a arrogância e superioridade às pessoas que lhe eram próximas, como a mãe, o pai, os irmãos, todos eles operários fabris frustrados com uma vida que não escolheram e na qual foram cedo emparedados.

O problema dos trânsfugas de classe começa no sentido pejorativo que o próprio conceito acarreta, sendo visto como aqueles que desertam das suas origens. Desertores da sua própria classe que ambicionam ascender socialmente através do seu trabalho.

A relação de desigualdades sociais e educacionais tornou-se um dos objectos mais pesquisados na área da sociologia e tem-se provado que poucos conseguem singrar profissionalmente quando crescem em ambientes adversos. É possível, mas é improvável. Consigo contar pelos dedos as pessoas que estudaram comigo na escola dos subúrbios de Lisboa, que cresceram em meios problemáticos violentos e necessitados e que conseguiram seguir estudos superiores e ter hoje bons empregos. São poucas, pouquíssimas. A ilusão de esperança numa vida melhor através do mérito que se promove hoje, tida como meritocracia, não passa de uma fantochada para distrair quem nunca deixará de ser uma marioneta governada pelas limitações do ambiente em que cresceu e vive. Teremos cada vez menos trânsfugas porque voltámos a viver nos tempos em que mandar um filho estudar numa grande cidade se tornou incomportável para uma família de classe baixa.[4] É um retrocesso educacional e social. Eu tive a sorte de ter estudado na geração de 90, safei-me, mas continuo em fuga.


[1] https://www.youtube.com/watch?app=desktop&v=wn7RxTuQc4U

[2]https://www.publico.pt/2014/12/05/culturaipsilon/noticia/ou-como-se-salvar-do-pesadelo-de-ter-sido-um-jovem-homossexual-num-meio-operario-1677765

[3] https://expresso.pt/geracao-e/2024-11-07-jovens-lgbti--continuam-a-ser-alvo-de-bullying-e-discurso-de-odio-nas-escolas-47bbf151

[4] https://expresso.pt/sociedade/ensino/2024-03-21-Manifestacao-em-Lisboa-estudantes-pedem-mais-casas-e-menos-propinas-8f3d9a51