Não se pode não sentir uma tristeza imensa. Não se consegue não perceber a falta imensa que nos vai fazer. A cada um de nós, crentes e não crentes. A um mundo que se afasta de valores fundamentais de amor, da aceitação da diversidade e da construção de paz.

Não se pode deixar de sorrir por este Papa tão único ter esperado pela alegria da Páscoa para partir, dizendo-nos a todos que a vida não se faz de Quaresma e sofrimento, mas sim de luz e de alegria. Que essa é a essência do seu legado. Uma esperança que não se apaga, uma vida que se descobre e continua.

Apesar da redundância, nunca é demasiado lembrar que este não foi apenas o Papa da simplicidade e do sorriso. Da simplicidade no nome que escolheu, na recusa do luxo dos sapatos vermelhos e dos dourados, no significado profundo das suas palavras que não se enredaram em complexidades indecifráveis ou em ambiguidades que serviriam todos os gostos. Do sorriso que não se confundiu com mera simpatia, mas que se transformou em verdadeiro acolhimento de tantos para quem tantos não querem olhar.

Foi muito mais do que simplicidade e sorriso. Foi coragem. Porque não relativizou o sentido cristão da abertura a todos. Porque recusou veementemente os nacionalismos anti-imigração. Porque sacudiu as consciências de quem fecha as portas aos que não escolheram a sua orientação sexual. Porque recebeu as mães solteiras. Porque ousou denunciar o capitalismo selvagem como agressor do bem comum. Porque afirmou a ecologia e o combate à destruição do Planeta, a nossa “casa comum”, como desígnio de qualquer católico e não-católico. Porque promoveu, na senda de alguns dos seus antecessores, o diálogo inter-religioso como avenida aberta para a paz mundial. Porque combateu o clericalismo como um dos mais sérios cancros da Igreja Católica. Porque não se afundou no ritualismo. Porque abriu as portas a Cardeais de geografias esquecidas. Porque não baixou os braços, nem resignou, quando confrontado com o maior pecado da sua Igreja, a violação de tantos menores. Porque reabilitou alguns dos clérigos que tinham sido rejeitados pela instituição, porque viu o seu valor. Porque não mediu palavras, não teve medo, não falou só para dentro, não nos deixou o conformismo, mas sim a inquietude.

Foi demasiado para uns, foi pouco para outros. Foi um gestor de relações difíceis, mas a raiva que despertou aos que mais não queriam do que o fechamento e o obscurantismo atesta da sua grandiosidade. Tentaram colar-lhe rótulos. Progressista, comunista, socialista. Mas o que se lhe colou unicamente foi uma adesão inequívoca às origens do cristianismo.

Todos os Papas, ao longo da história, foram católicos. Nem todos os Papas foram cristãos. O Papa Francisco foi-o, porque soube sempre posicionar-se do lado do amor, da recusa da segregação e do ódio. Não o fez com relativismos. Mas recusou o relativismo assente no moralismo, ao contrário de alguns dos seus mais próximos antecessores. Não relativizou o amor em nome do compromisso político ou do viés. Quando, em Lisboa, disse “todos, todos, todos”, não acrescentou um “mas” logo a seguir. Não disse, como outros correram a dizer que “todos, todos, todos” não é “tudo, tudo, tudo”. Esta hermenêutica do seu discurso, rapidamente feita por quem ainda teme a abertura, está nos antípodas da sua mensagem e do seu legado.

Há cerca de 11 anos, nuns exercícios espirituais com um padre jesuíta, ouvi explicar, em palavras simples, o significado das palavras fé, esperança e caridade. Dizia o Padre que fé é saber que alguém nos ama e que não estamos sozinhos. Esperança é a capacidade de construirmos futuros. Caridade é transformar essa esperança em ação pelos outros. Muitos de nós sentimos que este Papa era o que se costuma caracterizar como uma lufada de ar fresco. Partilhámos um sentimento de esperança perante uma Igreja que, por vezes, hesita em olhar para quem está e para um futuro que pode ser melhor. Atendo-nos à definição proposta de esperança, isto significa realmente que o Papa Francisco foi um Papa de esperança, ou seja, um Papa que nos deu a possibilidade de construir futuros.

É bonito perceber que o Papa Francisco não foi apenas o Papa dos crentes. Amigos ateus, agnósticos, membros de outras confissões, reconhecem o seu humanismo, a sua bondade e a importância crucial das suas palavras e já sentem saudade nas mensagens trocadas esta manhã. Reconhecem o valor político da sua mensagem no contexto do crescimento dos divisionismos e dos retrocessos nos valores da dignidade. Nem todos concordamos com tudo, mas todos sentimos a centralidade dos seus ensinamentos.

Desejamos que os Cardeais sejam verdadeiramente iluminados na escolha de um sucessor que seja motor de continuidade e de aprofundamento deste caminho. Felizmente, nas suas escolhas, Francisco deixou um conjunto de candidatos que poderão manter a sua palavra viva.

Em espírito de Páscoa, hoje é dia de sentir a alegria de uma vida que fica, de uma gratidão pelo que, na nossa pequenez, temos dificuldade em explicar. É difícil explicar esta voz corajosa, esta lucidez perante a loucura do mundo. E, por isso, digo obrigado. Obrigado, Papa Francisco, por ser esperança, por nos ajudar a construir futuros.