“Éramos felizes e não sabíamos" - O Presidente da República (PR), que tem esta quarta-feira a sua primeira sessão de "cumprimentos de Boas Festas" com o atual primeiro-ministro, Luís Montenegro, já confessou que tem saudades do tempo de coabitação com António Costa.

"Duvido que tenha havido tantos períodos de tanta boa convivência entre órgãos de soberania, o que não quer dizer coincidência de pontos de vista, sobretudo quando somos de famílias políticas diversas", dizia, há um ano, o então primeiro-ministro demissionário, hoje presidente do Conselho Europeu a estrear-se na sua primeira cimeira. E o Presidente salientava que tinha havido "um esforço de compromisso". Avaliava os oito anos de Presidente de um só primeiro-ministro: "Eu acho que valeu a pena. Valeu a pena!" E até já começava a mostrar que ia ter saudades: "Para ser sincero sincero, sincero, eu estava convencido que ia durar mais um tempo."

O Presidente chegou a assumir publicamente que ia ter de fazer um esforço para se adaptar a um novo primeiro-ministro, pelo que a frase dista há uma dezena de dias sobre o tempo em que era feliz, falando mesmo de "uma felicidade relativa, mas felicidade", pelo que as palavras - ainda que fosse oficialmente sobre o tempo em que o populismo não era uma preocupação em Portugal e Trump tinha sido afastado da presidência americana- foram interpretadas a como uma manifestação por parte do inquilino de Belém de que gostava mais da coabitação quando o chefe do Governo era António Costa. Para que não restasse nenhuma dúvida, Marcelo qualificou essa experiência como “inesquecível” - qualificativo conhecido pelo seu uso exclusivamente aplicado a memórias boas.


O que mudou então, para Marcelo, na coabitação com o primeiro-ministro depois da substituição de Costa por Luís Montenegro?


O atual chefe do Governo não é - mas sobretudo não quer ser - como o antecessor, e deixou isso marcado desde o primeiro dia em que assumiu o cargo de primeiro-ministro (2 de abril passado). Quem os apresentou foi o amigo comum Luís Marques Mendes e isso terá acontecido quando Montenegro era vice-presidente de Miguel Macedo na bancada parlamentar do PSD, algures em 2010, sendo Pedro Passos Coelho já líder do PSD, mas então ainda na oposição a Sócrates. Montenegro era uma estrela em ascensão no partido e Marcelo estava de pés bem fincados no comentariado político. Há muito que Mendes conhecia pessoalmente Montenegro, mais precisamente do tempo em que encabeçava a lista do partido às legislativa por Aveiro, sendo Montenegro o presidente da secção do PSD em Espinho.

Atualmente, embora “cada um no seu estilo”, Marcelo e Montenegro vão dizendo que mantêm uma “relação excelente” e a instrução no Governo é para evitar conflitos com o Presidente. Mesmo ao fim de uma semana em que Marcelo disparou em várias direções, da saúde à educação, mas sobretudo em relação aos sem-abrigo, dizendo mesmo que este setor tinha ficado num "buraco". O Presidente fez dos sem-abrigo uma das causas dos seus mandatos e lamentar não haver uma estratégia em curso para a qual até gostaria, eventualmente, de ter uma palavra a dizer. Mas a estratégia de Montenegro na relação institucional também passa por não dar espaço a Marcelo para falar diretamente com ministros, ao contrário do que acontecia nos governos de António Costa.


Competição de selfies


O primeiro-ministro não é dado a partilhar processos de decisão, como aparentemente acontecia mais no tempo que Costa ocupava o cargo. Esse é o seu estilo e ficou desde o início do seu mandato bem vincado na forma como balizou a relação institucional com Marcelo. A começar logo pela formação do Governo.

A história em redor da escolha de Amadeu Guerra para procurador-geral da República ilustra bem como a coabitação mudou para Marcelo. Esta é, por lei, uma escolha a quatro mãos: o primeiro-ministro propõe e o Presidente nomeia.


Montenegro e Amadeu Guerra na posse do novo PGR, no Palácio de Belém
Montenegro e Amadeu Guerra na posse do novo PGR, no Palácio de Belém TIAGO MIRANDA


Em 2018, o processo de escolha de Lucília Gago (para suceder a Joana Marques Vidal) tinha sido antecedido por meses e meses de conversas e troca de sugestões entre Costa e Marcelo. Agora, porém, na escolha do sucessor de Lucília Gago, Montenegro resolveu a situação com Marcelo em modo “operação relâmpago” e no último minuto possível, ignorando os pedidos do inquilino de Belém para que essa conversa se fizesse com alguma antecedência.

Fonte do Expresso em São Bento salienta que os dois têm “até estado várias vezes juntos em público, já foram ao estrangeiro juntos, já foram ao terreno no país juntos e Marcelo já foi convidado para presidir a um Conselho de Ministros” (em setembro, para analisar a situação relativa aos incêndios). Reconhece no entanto que “é verdade que nesta fase a relação é, como deve ser, sobretudo institucional”.

Dito de outra forma: o contacto é regular e há “alinhamento em tudo o que é essencial” mas isso tem requerido um processo de adaptação, com o tom a ser assumidamente marcado por Luís Montenegro. E as questões da popularidade - com Marcelo em perda e Montenegro ainda em estado de graça - têm feito parte da equação. Veja-se o que aconteceu nas celebrações do 10 de Junho na Suíça, onde os dois estiveram juntos.

O que aí se verificou, num encontro com a comunidade emigrante, foi uma acesa competição em torno das “selfies” (imagem de marca da presidência marcelista), com Montenegro aparentemente a ser mais procurado do que Marcelo. Num momento presenciado pelos jornalistas, tornou-se evidente o “desconcerto”: a comitiva presidencial preparava-se para abandonar o local quando percebeu que o primeiro-ministro estava para ficar. O Presidente deu meia volta e ficou também.


“Pão pão, queijo queijo”


A principal diferença residirá no facto de a relação de Marcelo com Costa já ser antiquíssima enquanto que com Montenegro é relativamente recente. Na verdade, quando o atual Presidente conheceu o atual presidente do Conselho Europeu (foi seu professor na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa), na primeira metade da década de 80, Montenegro, nascido em 1973, tinha pouco mais de dez anos.

Depois, em 1989, António Costa é o militante do PS que dirige a campanha para a Câmara de Lisboa em que Jorge Sampaio derrota Marcelo. Mais tarde, na segunda metade dos anos 90, Costa, como governante titular dos Assuntos Parlamentares, é um dos principais interlocutores das negociações orçamentais que esse Governo, minoritário, liderado por Guterres, tem de fazer com o PSD, liderado por Marcelo (de 1996 a 1999).

Quem conhece bem os três (Marcelo, Costa e Montenegro) salienta que acima de tudo, entre o PR e o antigo PM há uma grande afinidade: filhos ambos de elites políticas lisboetas, adoram ambos passar horas em grandes conversas especulativas de “análise da situação política”, com cenários e mais cenários políticos em cima da mesa, futurologia de curto, médio e longo-prazo, nacional, europeia e mundial.

Já com Montenegro nada disso se passa. O registo é “pão pão, queijo queijo”: tratam um com o outro o que têm de tratar - processo legislativo, política externa, Defesa - estando o PM indisponível para tudo o resto.

Para já, como salienta fonte do Expresso em São Bento, a coabitação tem decorrido “sem atrito”. A verdade, todavia, é que, aprovado que está o OE2025, o Presidente tem dado mostras de maior exigência e sentido crítico. Fê-lo falando sobre Saúde(“estar a mexer no sistema de saúde, e em particular no Serviço Nacional de Saúde, demora tempo, custa dinheiro, cada mudança demora tempo e custa dinheiro, e é tempo perdido e é dinheiro mal gasto, se não há o mínimo de estabilidade”), sobre sem-abrigo (“precisamos de saber qual é a estratégia do Governo. Acho que a estratégia tem de ser nacional, embora a execução tenha de ser de componente dominante local”) e sobre Ciência( "em matéria política de ciência tem havido muitos ziguezagues, quer das universidades, quer do Estado"). Já sobre contas públicas, manifestou confiança no bom senso do Governo, mas também pediu atenção ao "avisos políticos" do governo do Banco de Portugal, Mário Centeno.


O Presidente parece, entretanto, preocupado com a sua sucessão e com o que fará depois de sair de Belém. No fim-de-semana, rejeitou "messianismos" e lembrou a importância do primeiro Presidente civil. Na semana passada tinha assegurado que, que quando deixar a Presidência, se afastará da atividade política: “Irei aos Conselhos de Estado, irei às cerimónias 25 de Abril, 10 de Junho, 5 de Outubro, mas não devo estar a intervir naquilo que é o dia-a-dia da política nacional e internacional.” Na rede social X, o ex-líder do PSD, Rui Rio ironizou. "Nem que Cristo desça à Terra", escreveu, lembrando a frase dita por Marcelo ao jornal "Público" recusando uma candidatura à liderança do PSD para a qual acabou por avançar.

Neste tempo em que os católicos celebram a descida de Cristo à Terra, a sessão de Boas Festas desta quarta-feira será um bom momento para perceber se Marcelo e Montenegro ainda têm esperança numa felicidade conjunta ou estão só a fazer tempo para acabar uma coabitação que, aconteça o que acontecer, será sempre curta.