Moçambique voltou a ir às urnas. Para eleger o Presidente da República e Deputados, bem como Governadores e Assembleias Provinciais, entre generalizados clamores a exigir mudança. O sonho de tantos moçambicanos não se traduziu nos resultados oficiais, divulgados pelo partido que domina o país, condenando-o à pobreza extrema. São insistentes e cada vez mais fortes as acusações de fraude eleitoral. Repetindo-se, em grau maior, o que já ocorrera nas eleições autárquicas de 2023.

Infelizmente, um cenário longe de ser caso único no mundo contemporâneo. Aconteceu algo semelhante nas eleições presidenciais na Bielorrússia de 2020 e na Venezuela já este ano. Grande parte da comunidade internacional recusou reconhecer aqueles escrutínios, grosseiramente adulterados para garantir a perpetuação dos déspotas no poder.

Na cartilha dos tiranos, as eleições periódicas são mera maquilhagem pseudo-democrática para atenuar a expressão do poder absoluto. Um facto que não se torna menos intolerável quando ocorre num país de língua oficial portuguesa.

Falemos claro: os resultados da eleição de 9 de Outubro em Moçambique não são credíveis. Há sólidas suspeitas de manipulação dos resultados, em benefício do candidato da Frelimo. Muitas irregularidades ao longo do processo, começando pela própria organização dos cadernos de recenseamento e a recusa de candidaturas, já foram tornadas públicas. A missão de observação da União Europeia revelou que alguns dos seus 179 observadores foram impedidos de acompanhar o escrutínio em distritos, províncias e até a nível nacional, além de ter constatado “irregularidades durante a contagem e alterações injustificadas dos resultados eleitorais a nível das assembleias de voto e a nível distrital”. Sucedem-se as manifestações de protesto, violentamente reprimidas. Há dezenas de mortos e centenas de feridos. Incluindo o assassínio de Elvino Dias e Paulo Guambe, colaboradores muito próximos de Venâncio Mondlane, candidato presidencial do partido Podemos.

Motivos suficientes para que o Governo português não reconheça os resultados eleitorais. E para não hesitar um momento na condenação da repressão perante reclamações legítimas de uma população que sofreu demasiado tempo em silêncio.

Assim o exige o princípio da defesa da democracia e dos direitos humanos, que não pode ser de geometria variável nem estar confinado a determinadas regiões do globo. Como se apenas certos países e continentes merecessem viver em liberdade. Como se só alguns pudessem ser alvo de condenação.

Mesmo perante a candura da recente declaração ao país do presidente cessante, que mais do que ser dirigida ao povo moçambicano era dirigida à comunidade internacional. É difícil acreditar na vontade de consensualização entre os candidatos presidenciais quando a pressão sobre Venâncio Mondlane já extravasa para foro judicial, mas a comunidade internacional deve agarrar esta oportunidade e disponibilizar-se para a mediação.

Quase meio século após a proclamação da independência de Moçambique, devemos recusar por completo posições de condescendência ou de subserviência face aos actuais países que estiveram sob o domínio português com o estatuto oficial de colónias ou províncias ultramarinas.

Esse ciclo acabou de vez e pertence à História. É tempo de Portugal se libertar de traumas pós-coloniais relativamente a Moçambique, tal como em relação a Angola ou à Guiné-Bissau. Até em respeito pelo direito à autodeterminação e à independência que lhes foi reconhecido em 1974 e 1975.

O relacionamento entre Estados irmanados pela língua oficial comum deve existir hoje sem complexos. Entre pares, dotados de iguais direitos e deveres. Esta é, aliás, a única forma de honrar a plena soberania de cada um.

São, por isso, infelizmente “mais do mesmo” as declarações de Augusto Santos Silva, que ao ser confrontado com as suspeitas de fraude em grande parte das 30 mil mesas de voto, reagiu com uma declaração clássica: «Como antigos colonizadores, temos de respeitar escrupulosamente a soberania de Moçambique e sabemos que atitudes mais intransigentes levam a becos sem saída.»

O antigo ministro dos Negócios Estrangeiros e ex-presidente da Assembleia da República parece recomendar que abdiquemos do direito à indignação perante a burla eleitoral e a repressão subsequente.

Na mesma linha, é frustrante a reacção do actual chefe da diplomacia portuguesa. Paulo Rangel limitou-se a emitir uma declaração minimalista, condenando todos os actos de violência e apelando ao diálogo. Parece esquecido dos tempos em que usava uma linguagem muito mais vigorosa em relação a Moçambique.

«A actuação do governo português é tíbia e decepcionante. Limita-se a declarações, quase extorquidas a ferros, do ministro dos Negócios Estrangeiros. Fala no papel da CPLP, mas ninguém ouve falar dela. Em Bruxelas, é tal a timidez dos esforços de Portugal, que ninguém diria que está em jogo a vida de centenas de milhares de cidadãos de um país irmão.» Palavras suas num artigo do Público, em Novembro de 2020, a propósito do dramático conflito em Cabo Delgado.

Rangel, há quatro anos, parecia criticar por antecipação o actual ministro dos Negócios Estrangeiros. Autocrítica, neste caso.

Devemos solidariedade incondicional a Moçambique, sim. Mas ao seu povo, não ao seu regime. Um povo que sofreu quase duas décadas de ditadura marxista-leninista, uma guerra civil devastadora e quase 50 anos de governação falhada, condenando o país aos piores índices de desenvolvimento em termos globais.

Há talvez quem pense que teria de ser assim, como se os africanos fossem filhos de um deus menor. Mas basta observar o que vem acontecendo noutros países da África Austral, onde ocorreram transições pacíficas do poder, para se perceber como o domínio absoluto dos partidos herdeiros dos “movimentos de libertação” está condenado pelos ventos da mudança.

Na Zâmbia, a oposição triunfou nas eleições de 2021 e o actual Presidente veio das suas fileiras. No Malawi, o Chefe do Estado agora em funções derrotou nas urnas o antecessor, em 2020. No Botsuana, o partido que permanecia no poder desde a independência, em 1966, acaba de ser batido nas urnas: o novo Presidente vem pela primeira vez da oposição. E até na África do Sul o ANC perdeu este ano pela primeira vez a maioria absoluta, vendo-se forçado a fazer um acordo de governo com a Aliança Democrática e outros oito partidos da oposição.

São motivos acrescidos de esperança que reforçam o nosso dever de defender a democracia, a legalidade e os direitos humanos do povo moçambicano. O que é também uma forma de defendermos a comunidade portuguesa, formada por mais de 30 mil compatriotas que escolheram Moçambique como seu país de residência ou adopção. Também eles, lá, não merecem menos do que nós aqui.


O autor escreve com a antiga ortografia