
A vida em Kiribati é profundamente marcada pela localização remota, por uma elevada incidência de doenças e pelo agravamento dos efeitos das alterações climáticas neste arquipélago do Pacífico. O sistema de saúde do país está sob imensa pressão. E com a escassez de profissionais de saúde, Kiribati depende das pessoas capazes e dedicadas dentro da comunidade para prestar cuidados a quem vive nas ilhas mais afastadas.
No coração da ilha de Abaiang, uma língua de terra com 37 quilómetros de comprimento e apenas 90 metros de largura, Batiua tem sido a única assistente médica durante os últimos seis anos a servir uma comunidade de 6.000 pessoas e com recursos limitados. Assistentes médicos são pessoal de enfermagem com formação adicional sobre patologias médicas e formas de tratamento, podendo tratar pacientes com o apoio de profissionais clínicos.
Junto com pessoal médico da Médicos Sem Fronteiras (MSF), Batiua presta cuidados de saúde essenciais, com o que ajuda a enfrentar problemas como a desnutrição, doenças infeciosas e complicações na gravidez.
Os pacientes cumprimentam Batiua conforme chegam à pequena estrutura de cimento de um só piso, rodeada de coqueiros, que funciona como centro de saúde primária em Abaiang. Ali, Batiua começa a manhã examinando o primeiro paciente do dia e traduz o que é dito, na língua local, o i-Kiribati, para o médico da MSF em inglês. Ela é o principal ponto de referência para todos os pacientes, enquanto o médico lhe providencia apoio no diagnóstico e no plano de tratamento, além de lhe prestar orientação sobre os cuidados a providenciar aos pacientes.
Enfermeiros e assistentes médicos que trabalham para o Ministério da Saúde e de Serviços Médicos fornecem cuidados muito valiosos a nível comunitário integrados no sistema de saúde de Kiribati, desempenham um papel vital nas aldeias onde vivem, onde não existe pessoal suficiente e, ao mesmo tempo, há uma elevada incidência de doenças.
Equipas médicas da MSF prestam apoio, desde 2024, ao pessoal de enfermagem do Ministério da Saúde e de Serviços Médicos em Abaiang.
“Concentramos aqui as nossas energias porque há uma alta incidência de encaminhamentos em cuidados maternos desde as ilhas mais afastadas para o Hospital Central Tungaru , que se localiza na ilha principal de Tarawa”, explica a coordenadora médica da MSF Kiera Sargeant .
“Identificámos que existe a necessidade de apoiar assistentes médicos e enfermeiros através do estabelecimento de um modelo de cuidados com base comunitária”, prossegue. Isto significa que as mulheres podem, assim, receber cuidados de saúde mais perto de onde residem.
Só em 2024, as equipas da MSF fizeram o rastreio de doenças não transmissíveis a 888 mulheres em Abaiang. Um quarto delas tinham diabetes e quase 20 por cento tinham perturbações de hipertensão na gravidez. Mais de 60 por cento apresentavam sinais de obesidade.
E entre as 514 crianças rastreadas, nove por cento tinham sofrido recentemente com diarreia – o que demonstra os desafios atuais relacionados com o acesso a água e saneamento.
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Elevada incidência de doenças em Kiribati
Dos cinco pacientes que aguardavam vez naquela manhã para serem atendidos por Batiua, três eram grávidas e duas eram crianças acompanhadas pelas mães.
Chegada a vez de atender Gianna, de dez meses, a mãe, Rutii, agacha-se ao lado da bebé. Batiua informa-a: “O nosso médico diz que o som do peito dela está melhor do que ontem, uma melhoria em relação a quando chegou no dia anterior.”
Rutii acena com a cabeça e sorri. “A minha bebé, Gianna, tinha uma febre muito alta, dificuldade em respirar e não estava a comer bem. O médico da MSF e a assistente médica pediram-me para que ela fosse internada imediatamente. Fiquei muito preocupada. Agora a minha bebé está muito melhor, já começou a comer.”
Os impactos das alterações climáticas fazem com que crianças e adultos fiquem mais suscetíveis a contrair doenças transmissíveis e não transmissíveis.
Perturbações nos sistemas alimentares agravam os riscos de má nutrição, o que pode levar a excesso de peso e a obesidade, aumentando o perigo de doenças não transmissíveis, incluindo a hipertensão induzida pela gravidez e a diabetes gestacional. Isto deve-se, em parte, à excessiva dependência da população em Kiribati de alimentos hiperprocessados e à falta de terras aráveis que resulta da erosão e da elevada salinidade dos solos e da água.
Mais de 15 por cento das crianças menores de 5 anos no país têm atrofia; 3,5% das crianças com menos de 5 anos são afetadas por caquexia (síndrome caraterizada por uma significativa perda de peso e de massa muscular, frequentemente resultante de doença debilitante ou doença crónica). E 90% das crianças vivem em pobreza alimentar, com acesso muito limitado a uma dieta diversificada e nutritiva.
Estando desnutridas, as crianças tornam-se mais suscetíveis a contrair doenças infeciosas e outras doenças. “As crianças são mais afetadas porque [a desnutrição] tem impactos diretos no desenvolvimento”, frisa Batiua.
A cada vez mais acentuada preferência das pessoas por alimentos importados e processados e a reduzida capacidade em produzir alimentos localmente são alguns dos fatores que contribuem para a desnutrição e para muitas das doenças não transmissíveis em Kiribati. Além disso, as condições meteorológicas extremas e a subida do nível do mar, relacionadas com as alterações climáticas, ameaçam a produção agrícola e os meios de subsistência.
"É um enorme alívio para a ilha quando temos um médico"
As alterações climáticas afetam de forma substancial as mães e as crianças. A maior parte dos pacientes nas clínicas na ilha remota de Abaiang são mulheres.
Kiribati tem uma das mais elevadas incidências de doenças na região do Pacífico e, simultaneamente, uma das mais baixas taxas de acesso a cuidados primários de saúde – o que agrava a vulnerabilidade das grávidas e das crianças. As equipas da MSF estão a ajudar as mulheres a terem gravidezes mais seguras, através do trabalho desenvolvido junto de trabalhadores locais de saúde para os ajudar a diagnosticar e tratar a diabetes e a hipertensão em grávidas.
Os casos, incluindo os de gravidezes de elevado risco, que não possam ser assistidos ao nível de cuidados primários de saúde, são encaminhados para o Hospital Central Tungaru, na capital, Tarawa, numa deslocação de duas a quatro horas por barco, ou por avião (com voos uma a duas vezes por semana).
“Transportar pacientes em estado crítico é sempre um grande desafio”, conta a enfermeira Diana, que trabalha na clínica Takarano , no Norte da ilha de Abaiang . Um só profissional de enfermagem ou assistente médico é responsável por cada clínica. “É um enorme alívio para a ilha quando temos um médico como o doutor Joseph, uma vez que ele tem mais conhecimentos médicos”, nota Batiua com um sorriso.
Para as pessoas de Kiribati, a crise climática é uma ameaça diária para a saúde. A subida do nível do mar contamina a água potável, aumentado as doenças diarreicas, e os eventos climáticos extremos perturbam o fornecimento de alimentos, agravando a desnutrição. As temperaturas mais quentes facilitam doenças transmitidas por mosquitos como a dengue, e o stress térmico tem impactos nas pessoas com doenças cardíacas e diabetes, assim como nas grávidas.
Todos estes desafios, combinados com o limitado acesso a cuidados de saúde, criam um ciclo agravado de saúde precária e de vulnerabilidade.
Melhorar o acesso a água potável
Aceder a água limpa e segura é um desafio diário para as pessoas em Kiribati. A água para beber provém principalmente de águas subterrâneas pouco profundas que estão contaminadas com água do mar, lixo e outros resíduos. Este limitado acesso a um fornecimento de água potável nos cuidados primários de saúde coloca um desafio significativo, afetando tanto o atendimento providenciado aos pacientes como as condições de saneamento nas clínicas. Sem água corrente na ilha, as clínicas de saúde dependem da água das chuvas ou de água trazida de casas próximas.
O Ministério da Saúde e de Serviços Médicos de Kiribati está a desenvolver esforços para assegurar o fornecimento de água à população. A MSF tem também vindo a trabalhar com o Ministério no sentido de testar a qualidade da água no lençol freático da ilha e analisar como esta se correlaciona com condições de saúde como a hipertensão ou a diarreia na gravidez.
“Estamos igualmente a trabalhar no mapeamento geográfico dos vários poços de água, para que a comunidade tenha mais informação sobre a qualidade da água em cada poço, e possa fazer escolhas mais saudáveis sobre onde obter água”, precisa a coordenadora médica da MSF, Kiera Sargeant .
As principais fontes de água doce são aquíferos lenticulares ou a recolha de água das chuvas. Os poços de água subterrânea podem ter água do mar ou estar contaminados por bactérias.
A logística das ilhas remotas
Kiribati enfrenta desafios geográficos únicos que têm impacto em praticamente todos os aspetos do dia a dia, incluindo nos cuidados de saúde e no transporte e gestão de resíduos. Constituído por 33 atóis e ilhas de recife, o país engloba vastas distâncias e limitadas infraestruturas que tornam difícil transportar abastecimentos médicos essenciais, ter acesso a cuidados de saúde especializados e fazer uma gestão eficaz dos resíduos.
Muitas das ilhas periféricas dependem de meios aéreos ou marítimos pouco frequentes para o transporte de abastecimentos essenciais, e os atrasos podem levar à escassez de medicamentos e ao acesso limitado a cuidados de saúde. Simultaneamente, a falta de uma estrutura adequada para a eliminação de resíduos implica riscos ambientais e de saúde, com resíduos médicos a acumularem-se muitas vezes em condições inseguras.
A localização remota, a alta incidência de doenças e os efeitos cada vez mais graves das alterações climáticas continuam a exercer uma enorme pressão no sistema de saúde de Kiribati. São cada vez mais as pessoas que enfrentam desafios agravados de saúde, incluindo desnutrição, doenças não transmissíveis e muito limitado acesso a água limpa – pelo que o acesso a apoio médico contínuo é fundamental.
A parceria da MSF com o Ministério da Saúde e de Serviços Médicos de Kiribati visa providenciar cuidados médicos, fortalecer a gestão farmacêutica e melhorar os esforços em saneamento. Trabalhar com profissionais médicos a todos os níveis, desde a base ao terciário, tem sido um dos pilares desta colaboração.
Profissionais de enfermagem e assistente médicos como Batiua dizem sentir alegria por ajudar as pessoas. “A minha missão na vida é erradicar a desnutrição em Abaiang, especialmente nas crianças com menos de 5 anos”, assegura.