Relatos de família e amigos, cartas, crónicas e até declarações de impostos, denúncias e julgamentos com Da Vinci no banco dos réus. São apenas alguns dos elementos descobertos e pesquisados, que servem de base a um livro que se apresenta como "a biografia definitiva sobre o génio de Leonardo Da Vinci", fruto da investigação mais recente e íntima feita pelo biógrafo de Leonardo, Carlo Vecce, e transformada na publicação que a Casa das Letras apresenta em Portugal.
"É o primeiro relato da vida de Leonardo traçado quase dia a dia, incluindo os pormenores mais pequenos e até agora negligenciados, relativos aos seus manuscritos e à sua obra gráfica e figurativa", que permite desenhar o génio visionário do séc. XVI através dos olhos daqueles com quem se relacionava e dos episódios que mais marcaram a sua vida.
Estudioso do Renascimento, Carlo Vecce tem dedicado a sua pesquisa ao estudo da figura e à obra de Leonardo Da Vinci, tendo dirigido programas de cooperação cultural na Índia e na China e sido destacado para a Accademia Nazionale dei Lincei. Professor na Universidade de Nápoles L'Orientale e escritor (o romance O Sorriso de Caterina foi a sua primeira obra publicada em Portugal), em A Vida de Leonardo, o autor projeta a "mente prodigiosa" de Leonardo de uma forma nunca antes abordada.
O SAPO mostra-lhe aqui um excerto da obra A Vida de Leonardo O Rapaz de Vinci, o Homem Universal, o Errante, de Carlo Vecce, numa pré-publicação exclusiva.
INTRODUÇÃO
"Esta é a história de um menino do campo. Filho natural de um notário e de uma escrava, uma rapariga forte e selvagem vinda de terras longínquas. Ele é selvagem como ela, rebelde, inquieto. Abandonado a si mesmo, assim que pode corre descalço ao longo do riacho até à casa da mãe que, finalmente livre, trabalha nos campos nos arredores da aldeia. Ele precisa desesperadamente dela, do seu abraço, do seu sorriso. E ela dá-lhe tudo o que tem, ensina-lhe tudo o que sabe: o amor, o espírito de liberdade, o respeito absoluto pela vida e por todos os seres vivos, o sentido da beleza, a capacidade de sonhar, de imaginar, de compreender, de olhar para além da superfície das coisas. Talvez também lhe dê o nome que significa liberdade: Leonardo.
Os anos passam rápido, e eis que o menino já é um adolescente maravilhoso. Um rosto de anjo e uma cascata de caracóis loiros. Vai para uma oficina de artistas em Florença, no coração do Renascimento. Em Milão, torna-se um homem, admirado por todos pela sua inteligência genial, pelo seu carácter brilhante e generoso e pela sua conversa afável. Sabe desenhar e pintar como ninguém, e parece capaz de realizar qualquer proeza, obras incríveis de engenharia e arquitetura, máquinas fantásticas para a paz e para a guerra. Toca divinamente a lira, é alto, forte, gracioso nos modos e nas proporções, veste-se com elegância, usa o seu manto cor-de-rosa curto, até ao joelho, e meias justas e bonitas. É belo, sabe que o é, e gosta de se exibir. Usa sempre o cabelo comprido e encaracolado. Neste homem universal ninguém reconhece o menino rude e selvagem de outrora. Mas aquele menino está sempre lá, dentro dele. E continua a fazer o que sempre fez: brincar, sonhar, imaginar.
Depois, volta a mover-se, a viajar. Não tem paz, não consegue ficar parado. Tudo se move à sua volta. Um mundo instável, em perpétua metamorfose: os rios que correm para o mar, o mar que quase parece respirar quando sobe e desce com a maré, as nuvens que navegam no azul e as estrelas perdidas na escuridão infinita da noite, as montanhas corroídas pelo vento e pela água e todas as formas de vida que nascem, crescem, morrem e voltam a nascer. E também ele, o errante, continua a percorrer os caminhos do mundo, a perder-se, a errar, mas sem nunca parar, sem nunca olhar para trás. O que procura ele? Quais são as infinitas perguntas que faz a si mesmo e às quais não consegue dar resposta? Quantas são as obras inacabadas, as pesquisas iniciadas e imediatamente abandonadas, os projetos grandiosos deixados no ar? Mas o que é que isso interessa? Todo ocupado, nem se apercebe de que o tempo passa e que se tornou um velho peregrino, com o cabelo mais comprido e mais fino, todo branco, tal como a barba. Parece quase um filósofo antigo, um feiticeiro, um sacerdote de alguma religião sapiencial. É esta a imagem que o espelho lhe devolve sem piedade, mas ele sabe que é apenas uma máscara. Não é o seu verdadeiro rosto. O abismo que existe na sua alma, a dor infinita de uma criança separada da mãe, quem pode realmente conhecê-lo?
Como poderia eu contar esta história? Antes de mais, ouvindo a voz dos seus contemporâneos. É uma voz fragmentária e viva, por vezes seca e despojada, mas sempre concreta, feita de vida e de sangue, de memórias que pertencem àqueles que o conheceram pessoalmente ou que, pelo menos, registaram o que ouviram dizer sobre ele: documentos, papéis dos seus familiares, contratos, cartas, crónicas, declarações de impostos, denúncias e processos, relatórios de embaixadores, cadernos de artistas e engenheiros, elogios de poetas cortesãos, o diário de viagem do secretário de um cardeal.
Algumas notícias, em Florença, tinham começado a ser recolhidas entre 1516 e 1525 por um tal Antonio Billi. O seu caderno perdeu-se, mas resta uma transcrição parcial posterior. Outras notícias, por volta de 1540, devem-se a um anónimo conhecido hoje como o Anonimo Gaddiano, porque o manuscrito que preserva a sua compilação veio da biblioteca da família florentina Gaddi. Não se trata de verdadeiras biografias, mas de esboços de biografias, como a que foi escrita em latim por um ilustre historiador humanista, Paolo Giovio, que teve a oportunidade de conhecer Leonardo entre Milão e Pavia em 1510-1511, e em Roma em 1513-1516. Compilada por volta de 1540, a sua «vida» permaneceu inédita até ao final do século XVIII. Em vez disso, foi a Vita di Lionardo da Vinci Pittore, et Scultore Fiorentino (Vida de Leonardo da Vinci, pintor e escultor florentino), de Giorgio Vasari, que foi publicada no início da terceira parte de Vite de’ Più Eccellenti Architetti, Pittori et Scultori Italiani, da Cimabue Insino a’ Tempi Nostri (Vidas dos mais excelentes arquitetos, pintores e escultores italianos, de Cimabue até aos nossos dias), impressa pela primeira vez em Florença por Torrentino em 1550 e, depois, numa segunda edição, ampliada, por Giunti em 1568.
É aqui que começa o mito. Depois da morte, Leonardo retoma a sua viagem no tempo e torna-se, de tempos a tempos, o artista divino tão vario et instabile (inconstante e instável) em inteligência e ânsia de perfeição que é quase incapaz de terminar as suas obras, e depois, até hoje, o génio universal, o mago e feiticeiro em relação direta com os mistérios da natureza, o herói romântico e decadente, o dândi e o esteta, o santo e o demónio, o Cristo e o Anticristo, o grande iniciado, o super-homem, o titã solitário e precursor da ciência e da tecnologia modernas, o grande mestre de uma obscura seita de espíritos «iluminados», o ícone pop global em que tudo e o contrário de tudo se encarna. Um jogo de espelhos, em que a imagem se multiplica infinitamente e se confunde com todas as ansiedades e angústias do nosso tempo. Mas onde está ele, o menino de Vinci? Onde é que se esconde?
Prefiro outra voz, clara e verdadeira: a dele. Uma voz feita de palavras e imagens. As palavras que fluem na escrita diária de milhares e milhares de páginas em cadernos, caderninhos, folhas soltas; e as imagens que se fixam noutros milhares de desenhos, esboços, gráficos e nalgumas sublimes pinturas. É talvez a maior das invenções de Leonardo, uma forma de comunicação global que é extraordinária na sua modernidade. O signo gráfico perenemente suspenso entre a oralidade e a escrita, a palavra e a imagem, numa tentativa de captar e representar a variedade, a mobilidade, a impermanência da natureza, da quantidade contínua em perpétuo devir. Uma escrita infinita, aberta, livre, sem hierarquias. Uma escrita «futura», um desafio ao tempo e à morte. Uma obra imensa, projeção de uma mente prodigiosa que, livre de todos os esquemas e preconceitos, deixa em aberto todas as possibilidades. Um canto de liberdade.
Parece um paradoxo, mas ouço essa voz muito mais perto de nós do que dos seus contemporâneos. Até ao final do século xviii, o corpus de manuscritos era quase totalmente ignorado, enterrado nalgumas bibliotecas e coleções privadas, e conheciam-se muito poucos originais da obra pintada. O resto era lenda.
A redescoberta do verdadeiro Leonardo é uma história do nosso tempo, que vai desde a descoberta e publicação de códices e desenhos até à aplicação das tecnologias mais avançadas no estudo e restauro de pinturas. Nos últimos anos, em obras como A Adoração dos Magos, a Virgem dos Rochedos e até a Mona Lisa, pudemos ver, pela primeira vez em quinhentos anos, algo que só Leonardo viu: as primeiras ideias em movimento, os esboços e rascunhos das suas visões. E compreendemos que essas obras não eram «imperfeitas». Percebemos por que razão ele queria deixá-las assim para sempre, e nunca as terminar. Eram pedaços da sua alma e do seu corpo, dos quais não se conseguia desligar. Eram laboratórios, lugares de sonho. Eram obras abertas à complexidade e ao mistério da vida. A sua beleza é a beleza da Criação, e é isso que as aproxima de Deus.
É um prazer ouvir a voz de Leonardo. Quando escreve, é como se estivesse a falar consigo mesmo: faz perguntas, responde--lhes, inventa o interlocutor, um adversário a quem fazer advertências ou um aluno, um rapazinho a quem ensinar alguma coisa. Uma voz calorosa e tranquila, que gosta de contar histórias e fábulas de animais no mesmo tom com que descreve os fenómenos da natureza e que, de repente, se eleva ao encanto da poesia e nos faz ficar de boca aberta perante as maravilhas da criação, ou então se entrega à cólera, ao sarcasmo, ao pessimismo, ferida pela maldade e pela loucura dos homens. Uma voz pessoal, privada, por vezes tão íntima que quase nos faz sentir envergonhados por termos espreitado o seu mundo interior.
Há muitos anos que escuto essa voz, perdendo-me no labirinto dos manuscritos e das visões de Leonardo. Analisei e publiquei os textos, os escritos literários, o Tratado de
Pintura e o Codex Arundel, guiado por mestres como Carlo Pedretti e Paolo Galluzzi.3 Tentei reconstruir os horizontes culturais de alguém que nunca foi um homo sanza lettere, na pesquisa da sua biblioteca, promovida pela Accademia dei Lincei, e divulgada na Internet pelo portal do Museo Galileo de Florença.
Talvez, no início, tenha sido sobretudo a sua aventura humana que me atraiu; desde que, aos quinze anos, li, quase por acaso, o ensaio de Freud, Uma Memória de Infância de Leonardo da Vinci. Tinha sido o primeiro encontro com Leonardo, para um adolescente que se interrogava sobre a vida, a beleza, o amor, o sexo. Quando o reencontrei, nas páginas dos códices, foi sempre a história do homem entre os homens que me interessou.
Em parte, também escrevi essa história, há mais de vinte e cinco anos, numa monografia traduzida em várias línguas estrangeiras. Mas é uma história tão grande que, mesmo quando pensamos que a abraçámos por inteiro, damo-nos conta de que abraçámos uma sombra, enquanto a vida, a vida real, foge. E assim voltei ao labirinto atrás dos mais ínfimos pormenores, na ilusão de agarrar a sua mão e de a segurar com força, antes que ela desaparecesse de novo: escritos e reescritos, rasuras, sinais gráficos aparentemente sem sentido, etc., nomes de lugares e de familiares e de amigos e de alunos, datas e sinais do tempo, listas de livros e de coisas, listas de compras diárias, contagens de dinheiro, memórias e confissões, triunfos e derrotas. Foi com tudo isto que, pouco a pouco, juntamente com os documentos, estudos e descobertas dos últimos vinte anos, esta nova «vida» ganhou forma.
Ainda faltava algo. A peça mais importante do mosaico. Caterina, a mãe. É ela que ilumina toda a vida do filho, que nos aproxima dele numa dimensão plenamente humana e nos faz compreender que o mistério da sua obra não é feito de enigmas insondáveis e obscuros, mas dos mistérios simples e imensos da vida: amar, nascer e dar à luz, sofrer e alegrar-se, viver e morrer. A sua história é uma história de sofrimento e de dor, de esperança e de liberdade, a história da mulher que, por último no mundo, deu à luz o maior génio da humanidade. No final, não é mais do que uma história de amor, a história de uma mãe e do seu filho. Uma história de separação e de perda. Quantos milhões de histórias como esta, e cada uma delas é única, irrepetível e maravilhosa. A história de cada um de nós. E ele, o filho, passará toda a sua vida a tentar encontrá-la, a recuperar algo do fundo do seu coração. A carícia de uma mão, a luz de um sorriso."