
Como seria de esperar, embora sempre fascinante, foi negro o primeiro sinal de fumo emitido pelos 133 cardeais encerrados — física e eletronicamente — na Capela Sistina do Vaticano. Com uma gaivota curiosa a pairar perto da chaminé e quase quatro horas de atraso em relação ao ritmo previsto por todas as fontes.
Por enquanto, não há Papa, embora esta noite seja importante e talvez decisiva para as votações de amanhã e depois. O conclave mais curto durou 30 horas, mas foi no Renascimento. O mais longo, medieval, estendeu-se por mais de dois anos. Em teoria — nada o impede —, os 133 poderiam ter decidido não votar esta quarta-feira, embora seja improvável e, para já, ninguém possa saber.
Quinta-feira, realizar-se-ão mais quatro votações, duas de manhã e duas à tarde, mas com apenas duas “fumatas”. A não ser que as manobras anteriores tivessem tido algum efeito súbito, caso em que a “fumata” aconteceria depois da primeira ou terceira votação. O escolhido precisa de 89 votos, maioria de dois terços.
Se não houver Papa até sexta-feira à noite, a regra prevê um dia de pausa (sábado) e conversas informais entre os eleitores antes de voltarem a votar. No entanto, é improvável que volte a ser alcançada a duração de 33 meses do famoso conclave de Viterbo (a 80 quilómetros de Roma), quando os cidadãos cansados deixaram os eleitores a pão e água e, no final, até removeram o telhado do edifício. Era inverno.
Razões para um ritmo lento
As “fumatas” chegaram mais tarde do que se esperava, provavelmente porque havia muitos eleitores e a maioria deles votava pela primeira vez (um nem tinha alguma vez entrado na Capela Sistina). Outros são idosos e mostravam sinais evidentes de cansaço, quarta-feira, o que também pode influenciar o ritmo da votação. Se, além disso, um voto não for claro, tiver marcações estranhas ou houver mais ou menos boletins na urna do que os 133 eleitores, a votação tem de ser repetida.
Impassíveis, os Guardas Suíços — o “exército” particular dos Papas — montam guarda, de alabardas na mão, em todas as entradas e saídas da capela católica mais visitada do mundo, restaurada há 20 anos, pela primeira e última vez, graças a uma generosa doação de uma estação de televisão japonesa: uma “reforma” que restaurou uma surpreendente clareza às pinturas, que vão de Miguel Ângelo a Pinturicchio.
Ao cair da noite europeia, os cardeais eleitores embarcaram em autocarros expresso dentro do Estado da Cidade do Vaticano e percorreram os poucos metros até à residência de Santa Marta, equivalente a um hotel de três estrelas, onde viveu o falecido Francisco. Como há mais do que os 120 cardeais estipulados por lei, a antiga residência teve de ser renovada, tendo sido construídas novas divisões a um ritmo acelerado.
Cortados do mundo
Os cardeais jantarão juntos. Não transportam telefones, não têm computadores, não conseguem comunicar com o exterior e, por cima das suas cabeças, há todo o tipo de dispositivos eletrónicos que os impedem de sair, mas também de permitir a entrada de sinais. As operadoras telefónicas em Itália deixaram até o Vaticano sem ligação, a pedido do Estado Pontifício e de Itália.
Apesar disso, fora da Capela Sistina, além dos “suíços” com alabardas, há mensageiros para resolver qualquer emergência que possa surgir: médicos, enfermeiros, a morte de um parente num país vizinho ou distante, qualquer infortúnio. Em caso de força maior, um cardeal pode abandonar o conclave.
Os relatórios internos do Vaticano indicam que a primeira noite na residência de Santa Marta é ou foi movimentada, ou seja, importante. “As portas das salas abriam e fechavam continuamente”, recorda ao Expresso um antigo eleitor que esteve no conclave de 2013. Os cardeais informam-se, decidem mudar o seu sentido de voto, avaliam a fiabilidade uns dos outros, os grandes eleitores procuram apoio para o seu grupo, e assim por diante.
Antes, durante e depois do jantar, podem (e devem) conversar, porque depois da primeira votação já conhecem os (primeiros) blocos eleitorais que estão em cima da mesa. Ninguém sabe, por enquanto e de fora, qual foi o resultado da primeira votação, mas graças ao que os próprios papas ou alguns cardeais revelaram no passado, podem ser feitas conjeturas.
Seguidores de Francisco
É sabido que quase (quase!) todos os eleitores querem eleger um seguidor dos caminhos abertos por Francisco, mas com nuances: uns querem manter e até alargar a sua linha, outros preferem seguir o seu caminho, mas com maior rigor ideológico (doutrinário). Chamam-lhes progressistas e conservadores, embora até agora todos os Papas, pelo menos os modernos, tenham sido sempre conservadores nas suas ideias, do ponto de vista clássico.
A diferença, se é que houve alguma, reside em serem abertos ou fechados em relação à modernidade. São posições distintas, mas muito provavelmente correspondem aos dois primeiros blocos de votação dos eleitores desta quarta-feira.
Para cada um dos blocos, os boletins de voto correspondiam ao mesmo número de candidatos a Papa. Segundo as previsões, análises e especulações, poderá ter sido o húngaro Péter Erdö a representar os chamados conservadores; outros votos, aparentemente desordenados, terão ido para candidatos improváveis ou para algum até agora “escondido”, que, no final do conclave, poderá ser a surpresa (em 2013, Jorge Mario Bergoglio obteve apenas 12 votos na primeira volta).
Pelo meio, quase como um “compromisso” entre os dois lados, Pietro Parolin, secretário de Estado de Francisco, terá recebido uma quantidade generosa de votos (cerca de 60?). Não há outro candidato que reúna numa só pessoa a seriedade ou a rigidez ideológica — dependendo do ponto de vista — da diplomacia do Vaticano, que, a par da China, é a mais antiga do planeta (são seus, de certa forma, a mediação da paz em Moçambique, o acordo com a China e outros acordos de paz na América Latina); e conhecimento profundo do Vaticano, que não é secundário.
O grande eleitor dos conservadores, o cardeal alemão Gerhard L. Müller, atacou Parolin repetidas vezes. “Porquê?”, pergunta a “vaticanologia”. Recuar? Para obter um Papa “da lei e da ordem”, como diz a famosa série de TV? Para dar um golpe no tabuleiro de xadrez e perturbar o eventual “jogo” dos seguidores de Francisco? Talvez se veja na sexta-feira…
Além da gaivota curiosa, cerca de 30 mil pessoas já estavam estacionadas na Praça de São Pedro antes das sete da tarde, hora prevista para a pausa e a “fumata” do dia, com os olhos e telemóveis fixos, nesta era de supertecnologia, na chaminé antiga mais observada do mundo. Eram sete e um quarto, sete e meia, o relógio bateu as oito horas, os aplausos e os coros começaram na praça como que a pedir o fumo, chegaram as nove horas e com a hora o fumo artificial. De cor preta profunda.