Num momento em que se sucedem as reações à eleição de Trump um pouco por todo o mundo, importa analisar estes resultados à luz das palavras sábias de quem está no terreno: daqueles que votaram no candidato republicano, mesmo quando as sondagens antecipavam o contrário.

Quando comparado com a eleição de 2020, Trump ‘roubou’ votos ao Partido Democrata em todas as minorias étnicas e raciais. Procurei encontrar no hip hop, um dos esteios das comunidades mais vulneráveis no contexto norte-americano, a explicação parcial para a vitória do Partido Republicano.

A música “No Role Modelz”, de J.Cole, acompanhou-me em incontáveis serões no início da minha vida adulta e, após as eleições, revisitei-a. Pareceu-me mais pertinente que nunca. É daquelas peças que resiste à erosão do tempo. Este tema enfatiza a luta de jovens do sexo masculino de comunidades minoritárias para encontrar ídolos contemporâneos pelos quais possam guiar o seu comportamento, perante a destruição dos seus modelos familiares.

Está à vista que Kamala não se estabeleceu como o tão desejado ídolo para cativar esse eleitorado, quando um dos pilares da sua campanha era a conquista de uma vitória categórica junto desta fação de população. A sua derrota abriu as portas à versão 2.0 de Trump, aquele que se revelou como um role model mais apropriado para as ambições materiais de muitas minorias, que lhe escaparam na eleição anterior. Quando assim é, J.Cole diz-nos que:

"Fool me one time, shame on you (ayy)
Fool me twice, can't put the blame on you (ayy)"

Os que acreditámos, algures no recôndito passado da euforia da campanha de Kamala Harris, na vitória do Partido Democrata, tentámos convencer-nos que a política norte-americana se rege pelos mesmos valores das restantes nações. Fomos os ‘fools’ pela segunda vez, ‘shame on us’. Agora dedicaremos as próximas semanas a tentar encontrar uma explicação imbuída em racionalidade para Donald Trump voltar a vencer umas eleições, depois da hecatombe que foi o fim do seu primeiro mandato.

Ignorando que estamos no ciclo de ascensão dos populismos por todo o Mundo e que esta eleição não é mais do que uma repetição do que aconteceu há oito anos e se vai mimetizando por várias nações. Não há nada de novo para ver aqui: a vitória de um soberanista e businessman que promete sucumbir ao multilateralismo apenas quando estritamente necessário, para fazer prevalecer o lema com que tomou posse em 2016 “America First”. É um déja vu. Se os mesmos cidadãos americanos votaram em Trump em 2016 num momento de maior estabilidade geopolítica e económica, porque deixariam de votar agora, em que a posição dos EUA na NATO e nos mercados internacionais se vai deteriorando?

Enfim, o Estado de direito democrático tem destas coisas. Um candidato que se apresentou como o artífice de uma invasão de contornos fatídicos a um dos pilares do sistema político americano precisou de quatro anos para reagrupar as tropas e ser eleito com uma vitória contundente, que impressionou até o mais otimista dos trumpistas.

O povo é soberano e o povo decidiu. Ser democrata é aceitar estes resultados, com a perfeita consciência do risco que antecipam é óbvio que a beligerância de Trump caso saísse derrotado destas eleições contrasta com a saída pacífica de Kamala.

Atenção, a vitória de Trump não é um atentado maior à democracia do que foi em 2016. O seu discurso está quiçá mais extremado pelas pessoas que o rodeiam, mas a génese ideológica mantém-se. Retornou em força aos velhos chavões do discurso anti-imigração que pautaram a candidatura anterior.

Para além disso, ganhou força com a omnipresença de Musk nos seus comícios. Este apoio é sintomático de um domínio offline e online, que enfatizou a importância de dominar o algoritmo, em nome de uma ilusória liberdade de expressão. Aqui reside a grande diferença: mesmo que o discurso atual não seja fundamentalmente diferente do de 2016, o leviatã de Trump de 2024 tem os braços funcionais mais compridos e enraizados em todo o território, offline e online.

Esta máquina propagandista, que consolida e alimenta o poder de Donald Trump aporta aos próximos quatro anos riscos tremendos para o cenário nacional e geopolítico. No entanto, há uma possibilidade que ainda não vi discutida e, onde, na minha perspetiva, reside a questão mais complexa do futuro imediato e se a sua estratégia geopolítica e económica correr bem aos olhos da media nacional e internacional?

Não só irá mascarar a redução dos direitos reprodutivos e sexuais, das minorias, a precariedade laboral dos trabalhadores mais vulneráveis (agudizando o descalabro dos EUA no índice de Gini) dentro de portas, como irá legitimar a continuada ascensão de forças políticas securitárias e populistas em nome da soberania, fora delas. Toda a conjuntura se torna ainda mais perversa tendo em conta o atual crescimento da economia norte-americana, que facilita a gestão orçamental e a sua posição no mercado global. Trump sabe que este é o momento propício para impor taxas e tarifas ao comércio internacional, um dos lemas da sua campanha.

Ou seja, dependendo do cumprimento da promessa de término do conflito na Ucrânia e no Médio Oriente, é possível que a curto/médio-prazo Trump passe uma imagem de sucesso a nível económico e geopolítico, sob pena de legitimar por mimetismo o crescimento de regimes semelhantes noutros países ocidentais.

Há um elevado risco de o próximo passo representar um hipotético cessar-fogo, no qual os EUA tentarão reforçar a sua posição na ONU, após a passividade durante a invasão russa, com consequências nefastas para a soberania do povo ucraniano e palestiniano. A liderança Bush deixou uma herança similar no Afeganistão, no Iraque e em todas as regiões afetadas pela “guerra contra o terrorismo”. É sobejamente conhecida a narrativa dos EUA como os porta-estandartes da paz mundial, que encerra em si um atropelo aos direitos humanos, materializado nas atrocidades perpetradas nesses territórios. Sabem como continua a música? O que é que acontece quando nos enganam três vezes?

Em jeito profético: “Fool me three times, f*** the peace sign”

Aqui, deste lado do Atlântico estamos despidos de agência no que há manutenção do “peace sign” [sinal da paz] diz respeito. Os eleitores norte-americanos elegeram o seu destino, seja ele a manutenção do seu estatuto como potência mundial económica e geoestratégica pujante, ou a redução drástica dos direitos de comunidades fragilizadas no seu território. Quem sabe talvez ambos, em simultâneo.

Em última instância, não nos cabe a nós decidir, apenas evitar a expansão destes fenómenos políticos além-fronteiras e refletir nos prós e contras da aliança com os EUA (à partida pouco colaborativos) à medida que as novas peças do xadrez bélico e económico forem movidas na plataforma euroasiática e no Médio Oriente.

O populismo vazio de ideias já penetrou os espetros políticos europeus – que o digam a Alemanha e a sua nova crise política – porém não com a mesma força com que se consolidou dentro das hostes do Partido Republicano, acarretando uma potencial perda de direitos fundamentais. Resta-nos assistir ao desenlace das mais bizarras promessas eleitorais a transitarem para medidas concretas que afetarão a totalidade do globo. Entre mortos e feridos algum democrata há de escapar, mas quanto à América de Trump – “Don't save her, she don't wanna be saved”.