
Portugal é um país em que a democracia tem demorado a chegar em várias áreas de direitos fundamentais. Nalgumas dessas áreas, pilares da igualdade e da dignidade, o obscurantismo militante, gentilmente apelidado de conservadorismo pelos mais benevolentes, fez com que até há muito poucos anos tudo o que estivesse relacionado com a sexualidade fosse apenas sussurrado, motivo de vergonha, de escândalo ou de silenciamento.
Foi preciso quase uma década de democracia para a homossexualidade deixasse de ser considerada crime, foi motivo de escândalo público nalguns setores o combate às doenças sexualmente transmissíveis ter envolvido a distribuição gratuita de preservativos, recordo a vergonha associada ao acesso à pílula por tantas jovens.
Antes de prosseguir qualquer argumentação, que me espanta ser ainda necessária, recomendo vivamente, enquanto decorre a consulta pública sobre a estratégia de educação para a cidadania, a leitura do livro “Jovens e Educação Sexual. Contextos, Saberes e Práticas”, da autoria de Maria Manuel Vieira, Duarte Vilar e um conjunto amplo de estudiosos. Este livro, publicado em dezembro de 2024, apresenta as conclusões do inquérito feito em 2021 a alunos do ensino secundário de escolas públicas de todo o território nacional, sobre o impacto da educação sexual em contexto escolar, bem como sobre as fontes alternativas a que os jovens recorrem nesta matéria. É um estudo importante, já que retoma um inquérito feito em 2008, aquando da preparação da legislação sobre educação sexual, permitindo uma análise longitudinal do papel da escola no conhecimento e comportamento dos jovens.
É um livro que desfaz mitos e narrativas, mostrando, por exemplo, que não é verdade que haja uma iniciação mais prematura das relações sexuais na adolescência desde que há educação sexual.
Talvez a leitura deste estudo e de muitos outros que se dedicam a esta matéria tivesse sido importante para a tomada de decisão, antes de se vociferar chavões sobre “amarras ideológicas” e de se retirar, de forma quase total, a referência à sexualidade da educação formal dos jovens.
Se outros motivos não houvesse, a educação sexual tem provas dadas no combate à violência no namoro, à gravidez na adolescência, à prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, à homofobia. A violência doméstica continua a fazer vítimas mortais, é normalizada nas famílias e é na escola que se podem quebrar os ciclos de normalização destes comportamentos. As práticas das escolas, a experiência dos professores e estudos como os que referi mostram o que todos sabemos: há jovens que, só na escola, encontram os adultos que os podem esclarecer, com quem se sentem à vontade para conversar sobre sexualidade, com quem podem partilhar ansiedades e receios. A educação sexual tem provas dadas na redução da gravidez na adolescência, na tomada de consciência sobre a sexualidade responsável e na prevenção da violência.
A gritaria que pauta os ataques à educação sexual, muitas vezes pontuados por obsessões que rasam o fanatismo ou por campanhas de desinformação sobre o que se passa, de facto, nas escolas, frequentemente ignora o que estava nos referenciais de educação para a saúde, em que a valorização da afetividade responsável, do respeito pelo outro e por si próprio assumiam um papel tão central quanto as informações mais técnicas relativas à sexualidade. Isto porque, desde o início do século XX, Portugal tem trilhado um caminho de associação da educação sexual ao respeito pelos direitos de todos, na sua intimidade, e de construção de uma educação em que a afetividade e as relações amorosas responsáveis são ingredientes fundamentais para a erradicação da violência.
É, pois, completamente incompreensível a opção agora tomada pelo Governo, ao arrepio das próprias declarações dos responsáveis. Não surpreende completamente que, num arranque de legislatura em que praticamente todas as prioridades de Luís Montenegro sejam as mesmas da extrema-direita, este movimento irresponsável seja mais uma etapa da fusão integral das agendas do Governo com as dos radicais da direita antidemocrática.
Deveríamos já ter atingido um patamar de maturidade, enquanto país, em que o combate à gravidez na adolescência, à violência doméstica e no namoro, às doenças sexualmente transmissíveis, à homofobia e à bifobia não fosse matéria da esquerda ou da direita. Porque é de direitos humanos de que se trata.
Deveríamos já ter atingido um patamar de responsabilidade partilhada e de consciência na assunção de que a sexualidade faz parte das nossas vidas e que todos temos o direito à informação, ao conhecimento e ao esclarecimento e, sobretudo, que todos temos o dever de nos respeitarmos na expressão dessa sexualidade.
Querem voltar aos tempos em que a pornografia era a única fonte de conhecimento dos jovens sobre sexualidade? É esse o modelo?
Há ideias que são perigosas e merecem ser discutidas. A escola e a família trabalham de forma complementar. Mas complementaridade significa que cabe à escola prestar informação que, por vezes, não existe em contexto familiar ou até apresentar alternativas aos modelos familiares. Se a criança vive num contexto em que se banalizou a agressão da mãe pelo pai, é papel da escola mostrar um mundo em que isso é censurado. Se a criança cresce impedida de saber como prevenir comportamentos de risco, de natureza sexual ou de qualquer outra natureza, cabe à escola disponibilizar essa informação. Só uma herança pesada de tradições em que sexo equivale a silenciamento explicam que a escola não possa trabalhar estes temas.
A ideia de que as famílias devem ter um qualquer direito de veto sobre as opções de ensino nesta matéria é perigosa. Porque assassina a complementaridade e abre caixas de Pandora de uma enorme amplitude.
Os clássicos da literatura portuguesa estão cheios de “escândalos”. Incesto n´”Os Maias”. Mulheres sexualizadas no “Livro de Cesário Verde”. Paixão destrutiva e suicidária no “Amor de Perdição”. Erotismo e desejo n’”Os Lusíadas”. Triângulo amoroso em “Fanny Owen”. Aborto clandestino em “Mau tempo no canal”. Homossexualidade latente n’”O Delfim. Adultério n’”A Casa Grande de Romarigães”. Sensualidade mórbida n’”A Paixão do Conde de Fróis”. Qual é o próximo passo? Veto parental sobre as obras de leitura obrigatória? E o seguinte? A escolha livre entre o criacionismo e Darwin?
Talvez se as escolhas fossem baseadas em evidência científica, como a do estudo de Maria Manuel Vieira, Duarte Vilar e colegas, se percebesse os riscos que estão em causa.
Prefere-se o empreendedorismo à educação sexual. Mas esquece-se que, muito dificilmente, uma adolescente grávida, uma namorada sistematicamente agredida, um jovem vítima de bullying pela sua orientação sexual ou um jovem adulto com HIV terão a liberdade para poderem criar o seu negócio, porque o seu tempo estará ocupado com as consequências daquilo que lhes foi amputado.
As amarras ideológicas não estão numa escola que promove conhecimento e liberdade. Estão no atavismo e no retrocesso de uma proposta que pode amarrar muitos jovens a um futuro sem esperança, porque menos esclarecido e mais sofrido.