“O Ministério quer menos sexo nas escolas”. Foi desta forma marialva que um jornal decidiu abordar o eclipse legislativo da palavra “sexo” em matéria educacional. Com sentido de humor, os professores trocaram anedotas; brincaram com a manchete, perguntando-se o que andaram a perder este tempo todo.

Outros disseram que dão aulas há tantos anos e nem faziam sequer ideia de que havia tanto sexo nas escolas.

Alguns, mais ansiosos, escreveram mesmo ao jornal a perguntar para que escola deviam concorrer.

A leveza com que os professores encararam este eclipse contrasta abertamente com o incêndio moralista e o verdadeiro combate civilizacional que se travou nos media e nas redes.

Todos sabem a que se deve esta decisão ministerial. É, de resto, um clássico. Nada como um encosto moralista aos temas do sexo para sossegar as frustrações mais recalcadas e os genitais mais sufocados. Foram escritas tonitruâncias para todos os gostos. Trovejaram opiniões veementes contra o sumiço e a favor do sumiço. O costume.

Não confiem nos professores

Mas aquilo que mais se ouviu foi o silêncio quase absoluto dos professores neste debate. E quando se diz “professores” leia-se “professores que leccionam a disciplina de cidadania há décadas” e não aqueles que periodicamente vão à televisão dizer “Eu também já fui professor e...”.

Aos professores de cidadania deste país, os únicos que sabem realmente o que acontece nas suas aulas, a estes reservou-se-lhes segundos de tempo de antena porque, na verdade, nada disto é com eles. Isto é para políticos e para cronistas.

Estes professores tiveram de escutar as mil designações de uma disciplina que políticos e cronistas não têm sequer vergonha de desconhecer; tiveram de aturar as enormidades que se disseram sobre as “perversidades” – a palavra foi usada – que esta disciplina se “permite” exercer sobre inocentes petizes; tiveram de escutar que um professor comunista e um professor neoliberal dão estas aulas de maneira diferente “necessariamente” – a palavra foi usada.

Tiveram de suportar o vilipêndio mais sórdido sobre o seu trabalho. As palavras de ordem foram: “Não confiem nos professores. Eles estão a perverter as nossas crianças, ponto de exclamação”.

Ficou outra vez demonstrado o desprezo que a classe política nutre pelos professores, pelos professores de cidadania e pelos coordenadores da disciplina que há décadas vêm fazendo um trabalho de dedicação que ultrapassa em muito aquilo que o seu “emprego” lhes pede.

Nadadores-salvadores

Todos os agrupamentos podem testemunhá-lo, se alguém estiver interessado em os ouvir, que a disciplina de cidadania salva vidas. Tem sido tão decisiva nas escolas como ter nadadores-salvadores nas praias. Tomara um político ter feito tanto e salvo tantas vidas como um professor de cidadania.

O problema destas indignações postiças e ajuramentadas é que não mexem com absolutamente nada da realidade das nossas escolas. Podem proibir o que quiserem que a vida, ali, continuará. Podem tentar dizer que tudo mudou, ao mesmo tempo que juram que está tudo na mesma, que, no final, nada disso se refletirá na vida das nossas escolas.

É, afinal, hilariante ver hoje em dia o mais retrógrado e autocrata dos directores de agrupamento a ter de lidar com problemas para os quais não tem solução. Ninguém trava a realidade com as mãos. E muito menos com as leis. O lugar da temática e da identidade sexual veio para ficar. Nenhum futuro existe para uma escola que queira segurar esta areia com os dedos.

A boca na botija

A liberdade sexual existe. Temos, todos, construído um país mais tolerante e há milhares de pais que nunca pensaram em ter filhos homossexuais que hoje os aceitam e amam com a maior das naturalidades. É a maioria dos portugueses.

Aprenderam com o exemplo dos filhos. Cresceram com eles. Temos pais que não permitem que se ponha em causa a naturalidade com que encaram as decisões identitárias dos seus filhos.

Ao mesmo tempo, são aos milhares as histórias dos políticos moralistas que passam a vida a condenar comportamentos ditos imorais e que são depois (chega a ser entediante) apanhados em círculos sexuais libertinos, decadentes ou mesmo pedófilos. E depois vem o desfile ritual das manchetes, sempre ávidas de hipócritas, a denunciar aqueles que fazem em segredo aquilo que condenam em público. Já não há paciência nem para uns nem para os outros.

Mas “todos” em que aspecto?

Não há, portanto, dentro da classe docente, ninguém verdadeiramente surpreendido com o sumiço da palavra “sexo” da legislação educativa. É que o sexo tem sido uma consumição educativa. Volta e meia é sempre preciso ter um higiénico medo patife do sexo.

Em todas as aulas de cidadania, história, geometria descritiva, matemática ou português deve ecoar o “Todos, todos, todos” de Jorge Bergoglio. E deve perceber-se o que isso significa.

E, sim, deve começar-se desde tenra idade a explicar que as palavras têm importância e que têm o poder de aleijar pessoas. E que isso não é ser politicamente correto. Que isso é ser brioso, firme, cuidadoso, exigente e gentil. Não há uma idade certa para começar a aprender estas coisas. Vamos sempre a tempo.

O filho de um político

Só quem não entra numa escola há anos é que não percebe que, não só já não existe o “ensino primário”, designação obsoleta que tanto político e cronista continuam a regurgitar, como existem segmentos de alunos com opções sociais divergentes da norma.

Aquilo que se exige de uma escola para todos estes casos, e são tantos, é uma resposta profissional. Não uma resposta intransigente, de esquerda ou de direita, emocional, negligente ou, sequer, popular.

Repita-se as vezes que forem precisas: são milhares os casais portugueses que perceberam e aceitam a heterossexualidade, homossexualidade, bissexualidade ou assexualidade dos seus filhos e filhas. São ainda mais os milhares de filhos e filhas portugueses que perceberam e aceitam a heterossexualidade, homossexualidade, bissexualidade ou assexualidade dos seus pais. É a vida hoje.

Aprendemos todos que entre viver infeliz e não viver infeliz é melhor optar pela primeira. Cada filho de um político é uma pessoa que precisa de uma atenção especial. A escola precisa de lhe dizer que ser filho de político não é assim uma coisa tão grave. Tal como impedi-lo de assumir a sua orientação ou identidade sexual deve ser entendido, não somente como um crime público mas como uma parvoíce. Uma inutilidade pragmática.

Nenhuma ideologia é estanque e muito menos perfeita ou autárcica. Toda a ideologia é porosa. Porque a realidade o é também. Toda a legislação é incompleta. Corre sempre atrás da realidade. Não consegue caminhar à mesma velocidade da vida, sempre veloz, sempre surpreendente. O que é hoje verdade, não o será amanhã. Por que motivo havemos nós de estar sempre a repetir o óbvio?

Sete mil casas da democracia

Enxotar a palavra “sexo” ou “sexualidade” da legislação educativa e vir depois dizer que é preciso domesticar a controvérsia que suscita é lavar roupa com água suja e dar azo à sonsice. Nenhum professor tem tempo para perder com estes pânicos. Um professor não tem medo nenhum de falar de controvérsias. Pelo contrário.

A escola deve ensinar todo o miúdo a perder o medo de falar. Seja do que for. Não pode haver temas proibidos numa escola. Não há intransigências inúteis numa escola. Existe firmeza, conhecimento, ciência, amabilidade e disciplina.

A Assembleia da República, como se tem visto, não é a casa da democracia, como sempre gosta de arengar. A casa da democracia são as sete mil escolas públicas e privadas, profissionais e artísticas que existem em Portugal.

Não se conte com os professores para deixarem alunos para trás. Muito menos porque querem ser quem são. Seja qual for a moda legislativa do momento. Esta tentativa de denegrir os professores não vem, infelizmente, de agora. Haverá sempre quem queira transformar a sua casa da democracia numa casa dos segredos.