
Bruxelas não deve recorrer excessivamente a processos legislativos especiais - que evitam o escrutínio do Parlamento Europeu, eleito diretamente pelos cidadãos, e a consulta de instituições da sociedade civil - para conseguir aprovar medidas de desregulação económica. A confiança dos cidadãos está em risco e “a democracia é algo que não se deve dar por garantido", vincou a Provedora de Justiça Europeia, a portuguesa Teresa Anjinho, em entrevista ao “Financial Times” publicada esta sexta-feira, 4 de julho.
A provedora, desde 27 de fevereiro no cargo, considera que o recurso excessivo pela presidente da Comissão, Ursula von der Leyen, dessas prerrogativas legislativas - agora usadas, por exemplo, para tornar menos ambiciosas as metas climáticas aprovadas por Bruxelas há alguns anos - faz com que a percepção dos cidadãos seja de que "estas decisões estão a ser tomadas à porta fechada, que estão a ser feitas à pressa".
A Provedora nota que "os EUA estão a influenciar geopoliticamente todos estes temas (...) da simplificação, o tema da competitividade, à defesa", e deixa alertas relativos à ânsia europeia de responder às medidas de desregulação tomadas pela presidência de Donald Trump.
‘‘O problema" - disse Teresa Anjinho ao jornal britânico - nem é a simplificação de regras ou de processos burocráticos; mas sim "quando essa simplificação vem associada a processos de urgência que se desviam dos processos legislativos normais".
A Comissão deve, assim, cumprir os processos normais de aprovação de leis, já que “a forma como estas decisões estão a ser percecionadas (...) é de que a competitividade está, de certa forma, a ser conseguida à custa destes processos legislativos e destas leis pré-preparadas", acrescenta Teresa Anjinho.
A falta de transparência da Comissão já tinha sido alvo de críticas da Provedoria Europeia em temas como a compra conjunta de vacinas contra o vírus da covid-19 durante a pandemia. Ursula Von der Leyen foi obrigada recentemente pelo Tribunal Geral da União Europeia a revelar as mensagens escritas trocadas com o presidente executivo da farmacêutica Pfizer, fabricante de uma das vacinas, durante a negociação desse contrato de compra no valor de milhares de milhões de euros.
A presidente da Comissão, que tinha recusado anteriormente o acesso a essas mensagens escritas solicitado pelos meios de comunicação, alega, contudo, que não encontra os SMS em questão.
Em maio, a propósito do acórdão do Tribunal, Teresa Anjinho frisou que o mais recente relatório da Provedoria revelava “um aumento completamente inédito de mais de 40% das queixas”, grande parte relativas a dificuldades no acesso a documentos administrativos.
Em outubro do ano passado, a sua antecessora no cargo, a irlandesa Emily O'Reilly, responsabilizava, em declarações a um grupo de meios de comunicação que incluia o Expresso, a Comissão de Ursula von der Leyen por uma “preocupante” falta de acesso a documentos. A antiga provedora sugere que é da alemã, “particularmente vista como muito poderosa”, que virá esta quebra na transparência: "O controlo está concentrado no topo. Não creio que venha dos serviços, que não tomam as decisões sensíveis. São os vários gabinetes [dos comissários], incluindo talvez o da própria presidente”.
“Isto é frustrante e preocupante, porque se algumas destas coisas estivessem a acontecer noutros países, (a Comissão) estaria a apontar o dedo a esse governo", dizia então O'Reilly.
Teresa Anjinho, jurista, antiga deputada do CDS na Assembleia da República, foi eleita Provedora em dezembro no Parlamento Europeu à segunda volta, com elogios unânimes dos eurodeputados portugueses em relação ao seu trabalho. É a terceira provedora da história do cargo europeu, substituindo a irlandesa Emily O'Reilly, que esteve dez anos na liderança deste organismo. À Euronews, Teresa Anjinho dizia então que a sua candidatura visava “garantir que consigo chegar às queixas dos mais vulneráveis” e considerava "cada queixa é um ato de confiança (…) as pessoas dirigem-se a nós, por vezes, sem sequer terem a noção do que diz a lei, apenas com a sensação de injustiça”.
Comissão investigada
O “Financial Times” avança que a Provedoria Europeia abriu, entretanto, três inquéritos - cujas conclusões não têm força legal, ou seja, não são de cumprimento obrigatório pela Comissão - a algumas mudanças legislativas de emergência. Um deles diz respeito às iniciativas para aligeirar as regras de due dilligence empresarial que obrigam as empresas a tomar medidas para detetar e eliminar eventuais problemas ambientais e de direitos humanos nas suas cadeias de abastecimento. Organizações não-governamentais europeias queixaram-se de que a Comissão não cumpriu a lei que obriga à audição da sociedade civil e à avaliação prévia do impacto destas mudanças.
Outro inquérito diz respeito às mudanças nas regras de atribuição de financiamentos ao setor agrícola, menos exigentes a nível ambiental; ao passo que o terceiro incide sobre as alterações implementadas no combate ao tráfico humano, que incluem a criminalização de quem ajuda migrantes.
"A avaliação das consequências e dos riscos de certas decisões", como as relativas a direitos humanos, deve ser feita antes da aprovação das leis, diz Teresa Anjinho; e seguir os processos regulares serve para "garantir que há justiça".
O jornal britânico lembra ainda que Ursula Von der Leyen enfrentará, na quinta-feira, uma moção de censura no Parlamento Europeu, motivada precisamente pela alegada sua falta de transparência. Um grupo de deputados europeus encabeçado pelo parlamentar romeno Gheorghe Piperea contestam a falta de escrutínio das decisões do braço executivo da União Europeia, nomeadamente no que concerne às controversas mensagens trocadas com a cúpula da farmacêutica norte-americana.
Segundo o Politico, a votação, que será precedida por um debate na segunda-feira ao qual von der Leyen é forçada a comparecer, deverá resultar numa vitória para a presidente. Apesar de muitos eurodeputados de todos os quadrantes concordarem com as críticas à Comissão, os principais grupos parlamentares já recusaram acompanhar esta iniciativa de um deputado de extrema-direita. Para que a moção pudesse ser aprovada, demitindo com ela a presidente e todos os comissários europeus, dois terços dos 720 deputados teriam de votar a favor.