O debate sobre habitação que se tem vindo a fazer tem tanto de perverso como de incoerente. Perverso, porque quase todas as posições públicas tratam a questão como se fosse possível ir ao mercado e comprar casas disponíveis, uma mera aquisição como se de arroz se tratasse; incoerente, porque parece que, de um momento para o outro, esquecemos tudo o que se passou nos últimos quinze anos.

Com a grande crise do subprime que se iniciou nos Estados Unidos da América em Julho 2007, alastrada ao espaço europeu a partir do ano seguinte e provocadora de intervenções externas em vários países da União Europeia, os setores da construção e do imobiliário tiveram uma profunda retração.

Entre 2010 e 2015, o nosso país quase não viu nascer novos processos de construção de habitação, as vendas eram muito reduzidas e os bancos tinham em carteira milhares de frações. A edificação destinava-se principalmente aos Vistos Gold.

A partir de 2014, o país retomou o crescimento, os mercados começaram a renascer, mas o setor da construção tinha sofrido uma sangria de operários qualificados. Centenas de empresas não voltariam a ter atividade, muitas delas passaram a construir para novos interessados e a reabilitação, fruto de um aumento muito significativo do turismo e do alojamento local, deu um salto enorme.

Com a saída da crise, com a aceleração da economia, com a emigração de portugueses qualificados que foram à procura de melhores remunerações, o país começou a receber imigrantes que buscavam novas vidas. Há um sinal dessa pressão e o governo de António Costa atua. Em 2017 inicia-se o processo de recenseamento das necessidades junto dos municípios e em 2018 o país identificava um primeiro número de 26 mil habitações em falta. Estava traçado o objetivo inicial. Começa o trabalho para a criação de mecanismos de identificação de terrenos nos concelhos mais carentes, abre-se uma linha de negociação com os municípios e são assumidas dezenas de colaborações entre as administrações central e local.

Entretanto, as Estratégias Locais de Habitação, desenvolvidas no âmbito do Primeiro Direito, vão ganhando forma e são identificadas novas necessidades que iam muito para além das iniciais. Era evidente a obrigação de se ampliar o programa.

Em 2020, havia a medição das primeiras necessidades, uma estratégia e a identificação dos recursos para se cumprir.

Estamos no início da terceira década do século XXI e o mundo vê chegar a pandemia da Covid 19. As economias param, a chegada de novos imigrantes estanca. Ninguém sabe muito bem o que viremos a ter, depois dessa “pancada”, na ação dos indivíduos, das famílias, das empresas e dos serviços públicos. O imobiliário, situado na construção cara e na reabilitação, quase para também. Estamos nisto até 2022.

O pós pandemia vem com um mundo novo. Há muita liquidez nas famílias, nas empresas e nos fundos internacionais, os juros que os bancos pagam são baixos e há um refúgio – imobiliário. Mas também se reabrem as portas da imigração e o turismo torna-se avassalador.

Com o PRR, que decorre da pandemia, o país avança para financiamento a 100% das 26 mil casas iniciais. O processo começa com Pedro Nuno Santos e consolida-se com Marina Gonçalves.

A aprovação do Programa Nacional de Habitação já identificava a obrigação de se manter o financiamento das Estratégias Locais de Habitação para além do tempo de vigência do PRR, assumindo-se a necessidade de novas medidas. Em 2023 é aprovado o programa Mais Habitação com um conjunto de decisões relevantes para a construção e para o arrendamento.

O PS deixa de ser Governo, mas a economia havia acelerado, as empresas ampliaram ainda mais as contratações de imigrantes, o país quase não tem desemprego, mas o mercado de arrendamento é reduzido e a construção é insuficiente.

Com as novas medidas para o alojamento estudantil, de arrendamento, de construção de habitação e de financiamento para a aquisição aprovadas ainda pelo governo de Costa, o país começa a responder, mas não chega. A habitação a preços aceitáveis passa a ser o maior problema para os portugueses das áreas metropolitanas e do Algarve.

Pinto Luz, o novo ministro da AD, faz aprovar um novo programa. A garantia pública ampliada para jovens e a isenção de IMT e Imposto de Selo somam-se às medidas do governo anterior, a lei dos solos é revista mas não tem impactos imediatos, o arrendamento por autarquias para subarrendamento tem pouca adesão, os processos a que estão sujeitas as cooperativas não são simplificados. E há um enorme insucesso – os terrenos e edifícios públicos continuam a degradar-se sem que passem a estar disponíveis para a reabilitação ou construção.

Nos últimos anos, a identificação do número de famílias a carecerem de habitação passou para cerca de 150 mil. O Governo atual define os objetivos para o final da década em mais 33 mil casas a somar às 26 mil em construção. Ficam a faltar, com os dados de hoje, 80 mil habitações.

Tudo visto, deve concluir-se que o país precisaria de mais duas décadas para resolver as necessidades de hoje.

Olhando estes pressupostos importa agir. E para essa ação indicamos 12 propostas:

1) Aprovar diploma que obrigue os municípios ao aumento progressivo do IMI, até 10%, para casas vazias que não sejam de primeira ou segunda habitação (salvaguardando sempre as habitações dos nossos emigrantes) e não disponibilização de apoios financeiros às autarquias, para construção nova, se não for implementada a medida proposta;

2) Autorizar os municípios a lançarem uma Taxa de Disponibilidade a ser paga pelos proprietários de imóveis que, tendo rua pavimentada, água, eletricidade e saneamento à porta, não fazem uso dessas infraestruturas;

3) Aprovar legislação no sentido de obrigar os condomínios a identificarem anualmente as frações não usadas de cada edifício em propriedade horizontal;

4) Obrigar a Autoridade Tributária, a Segurança Social e a Caixa Geral de Depósitos a colocarem no mercado de arrendamento todos os imóveis de habitação que resultem de penhoras ou de não cumprimento de contratos;

5) Fazer cessar de forma automática as licenças de Alojamento Local quando não se tenha verificado uma ocupação superior a dois meses/ano nos últimos dois anos;

6) Reativação do Instituto António Sérgio (cooperativa) como instituição de promoção de novas cooperativas de habitação, financiamento dos terrenos e das construções, retirando esse peso do IHRU, e alargar às mesmas cooperativas a reabilitação de imóveis através de financiamento para a sua compra e posterior intervenção;

7) Determinar, através de iniciativa legislativa própria, o alargamento da possibilidade de construção de habitações unifamiliares em terrenos agrícolas não sujeitos a REN, devendo ser salvaguardadas as áreas sensíveis e as linhas de água, desde que essa construção esteja até vinte metros do eixo de uma via nacional ou municipal e que tenha acesso direto às redes de água e de eletricidade;

8) Promover a disponibilização gratuita, pelo IHRU, de projetos-tipo para a autoconstrução e criação, na Segurança Social, de uma bolsa de engenheiros civis que acompanhem e fiscalizem gratuitamente as obras promovidas por esses projetos, simplificando-se, ao mesmo tempo, o processo de aprovação municipal;

9) Indicar aos municípios das áreas metropolitanas do Porto e Lisboa e da NUT Algarve, o dever de indicarem terrenos do domínio público e privado do Estado e dos próprios municípios, mesmo que sujeitos a Reserva Agrícola Nacional, para a construção imediata de habitações, aprovando o Governo legislação de transferência de propriedade, eliminação dos ónus e promovendo a suspensão dos Planos Diretores Municipais nas áreas de construção indicadas, tudo no prazo de seis meses;

10) Determinar às representações diplomáticas de Portugal a identificação, em qualquer continente, de empresas com qualificações para a construção modular vertical de forma rápida e que queiram e estejam em condições de construir no nosso país, seguindo o procedimento de conceção/construção, e com a garantia de visto para a mão de obra do país de origem e alojamento garantido obrigatoriamente pelas empresas para os seus trabalhadores;

11) Aprovar legislação para que as CCDR’s e as Áreas Metropolitanas possam assumir grandes contratos de construção colocando-os em concurso, no mercado internacional, seguindo o procedimento previsto no número anterior ou usando projetos já existentes e que só careçam da modelação do terreno;

12) Criar uma base de dados dos imóveis públicos e disponibilizá-la publicamente, permitindo a apresentação de propostas de compra por parte de empresas e indivíduos através de um processo de avaliação expedito (a partir dos peritos já habilitados pelo Estado) e de hasta pública (nunca superior a três meses) com a obrigação de construção de acordo com as obrigações urbanísticas e num prazo obrigatório de três anos;

O país tem um dos problemas mais graves dos últimos cinquenta anos. Não pode agir como estivéssemos numa situação normal. Ter mais terrenos, ter menos burocracia, ter menos implicações urbanísticas, ter outras opções construtivas, receber empresas que saibam construir muito rápido e vindas de outros continentes, resolver os estrangulamentos que se colocam ao parque público inativo, ampliar a mobilização de habitação já construída, são urgências a que o Governo não pode virar as costas.

Pode ouvir este texto em Podcast aqui: https://tinyurl.com/m5rv9muy