Donald Trump vai voltar a assumir a presidência dos Estados Unidos numa altura de tensões internacionais. Antecipar a sua política externa não é fácil e tem revelado preocupações com possíveis mudanças nas relações dos Estados Unidos com os aliados europeus e da NATO. Na esfera da espionagem, a nomeação de Tulsi Gabbard para chefiar os serviços de informações nacionais gerou receios de politização dos mesmos, noticiou a agência Reuters. Espera-se, porém, que o impacto seja limitado junto dos “Five Eyes” (tradução literal: “cinco olhos”), aliança de espionagem composta por Estados Unidos, Reino Unido, Canadá, Austrália e Nova Zelândia.
Não era suposto o mundo saber da existência desta organização. “Será contrário a este acordo revelar a sua existência a quaisquer terceiros.” A frase consta do acordo entre o Reino Unido e os Estados Unidos, criado a 5 de março de 1946, que prevê a troca de informação entre os serviços secretos dos dois países. Só viria a público em 2010.
O pacto, criado no seguimento da II Guerra Mundial, definiu, por exemplo, a partilha de informação sobre operações de espionagem que envolvessem a recolha, criptoanálise, descodificação e tradução de comunicações estrangeiras, bem como a aquisição de documentos e equipamento de comunicação. Os dados recolhidos só não seriam partilhados em situações em que um dos países pedisse especificamente a sua exclusão, estando previsto que “é intenção de cada uma das partes limitar tais exceções ao mínimo absoluto”. Austrália, Nova Zelândia e Canadá acabaram por se juntar à parceria.
“É a parceria de informação secreta mais importante que os Estados Unidos têm com aliados e parceiros. É uma relação crucial e um nível de confiança em partilha de informação sem precedentes no mundo, um grupo de partilha de informação mesmo importante. Penso que parte dos receios podem ser um pouco exagerados, em particular em relação a Gabbard”, observa a investigadora Kelly Grieco, do Reimagining US Grand Strategy Program do think-tank Stimson Center.
Críticas “injustas” e até “sexistas”
Tulsi Gabbard, antiga congressista democrata e ex-candidata presidencial, serviu no Iraque entre 2004 e 2005, mas não tem experiência na área dos serviços secretos. A decisão de se encontrar com o Presidente sírio Bashar al-Assad, em 2017, gerou polémica. A futura governante é vista como tendo uma posição de simpatia pela Rússia.
Grieco entende que “não há motivo para questionar a sua lealdade aos Estados Unidos” e que “é bastante injusto” e até “sexista” que isso tenha acontecido “apenas porque não subscreve necessariamente a visão dominante sobre política externa”. Ressalvando que Gabbard carece de confirmação pelo Senado, “provavelmente vai haver cautela por parte dos aliados e parceiros dos Estados Unidos em partilhar” informação, comportamento que associa a preocupações com o próprio Trump.
“Pode ser limitada alguma informação e haver um abrandamento nesse sentido, que teria certamente impacto. Mas não creio que vá quebrar o ‘Five Eyes’ enquanto grupo de serviços de informações”, defende Grieco ao Expresso. Acrescenta que a cautela seria numa fase inicial e ao nível da informação partilhada diretamente entre os níveis mais altos das agências, entre quem obteve nomeações políticas. “Suspeito que ao nível dos profissionais de informação secreta muitas das relações vão continuar”, disse ao Expresso.
Aviva Guttmann, docente na área de estratégia e serviços secretos na Universidade de Aberystwyth, tem posição idêntica. “A minha sensação é que terá impacto inferior ao que se poderia pensar, porque, olhando para como a partilha de informação funcionou no passado, olham para critérios diferentes ao decidir se um documento de informação deve ser partilhado”, diz ao Expresso, frisando que estão em causa relações entre burocratas que “acreditam nas mesmas ameaças” e na necessidade de partilharem informação para as combater.
“Historicamente, o que vemos é que a partilha de informação secreta tem, frequentemente, a sua própria dimensão e dinâmica. Pode ser independente das pessoas que estão na liderança de nomeações políticas”, descreve. Guttmann deu o exemplo de uma crise política entre os Estados Unidos e o Reino Unido, em que o ex-secretário de Estado americano Henry Kissinger quis deixar de cooperar no âmbito do ‘Five Eyes’, mas em que essa visão foi rejeitada pelas agências e a cooperação se manteve.
Há registos desta vontade de Kissinger, associada à ligação entre o Reino Unido e outros países europeus. “Vou cortá-los de toda a informação especial secreta que recebem daqui. Se vão partilhar tudo com os europeus, não podemos confiar neles para uma relação especial”, lê-se no excerto da transcrição de uma conversa entre Kissinger e o então Presidente Richard Nixon, em agosto de 1973, publicado pela Universidade de Warwick.
“Um tipo diferente de relação internacional”
Entre guerras e desconfiança internacional, aparecem casos de cientistas e académicos condenados por suspeitas de traição e espionagem na Rússia, na China e nos Estados Unidos. Há quatro anos, o FBI abria um novo caso sobre contrainformação chinesa a cada dez horas. “Já não são só os russos a roubar secretos do Departamento de Estado. É toda a gente a tentar roubar todo o tipo de propriedade intelectual, a atacar infraestrutura crítica. A lista é interminável”, disse Mike Casey, diretor do Centro Nacional de Segurança e Contra-Informação dos Estados Unidos numa entrevista à rádio pública NPR, em abril.
As vantagens desta aliança para os países que a integram são reconhecidas pelos próprios. A agência australiana Australian Signals Directorate relata que o país “deu contributos significativos para a parceria, que trouxe benefícios significativos à nação através de tecnologia, inovação, conhecimento, competências e ‘alcance’ – que teriam sido difíceis de atingir de forma independente”. O CGHQ descreve que a aliança “ajudou a proteger os nossos países e aliados durante décadas”.
Guttmann destaca que a organização é necessária não apenas para combater ameaças transnacionais, mas também para manter a parceria “extremamente próxima” entre os Estados Unidos e o Reino Unido. “Há necessidade de trocar informação para combate ao terrorismo, mas o que acho que esta agência também faz é [colocar] esta relação entre países num nível diferente. É um tipo diferente de relação internacional”, analisa.
Qual a sua legitimidade?
Apesar das vantagens para os seus membros, não está afastada de escândalos diplomáticos. Em 2013, o jornal britânico “The Guardian” noticiou que documentos revelados por Edward Snowden mostravam que as atividades de espionagem da NSA (Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos) e da CGHQ pelo mundo se alargavam a aliados da NATO.
Nem é isenta de críticas. A organização não-governamental Privacy Internacional alerta que o secretismo em torno dos acordos de partilha de informação do “Five Eyes” permite “intrusões arbitrárias ou ilegais no direito à privacidade que contornam as restrições domésticas legais à vigilância estatal” e que por não existir legislação doméstica a regular a partilha de informação “muitos destes acordos carecem de base jurídica e, portanto, de legitimidade democrática”. As críticas são acompanhadas de sugestões, nomeadamente para que a partilha de informação seja limita ao “necessário e proporcional”.
Guttmann reconhece que falta responsabilização na partilha de informações. “A maioria dos países é muito livre de decidir que informação está a ser partilhada e pode haver uma tendência para partilhar demasiada informação, se pensarmos em proteção de dados, ou que uma pessoa pode ser suspeita de terrorismo mas não estar de todo a planear um ataque e, ainda assim, estar numa lista de vigilância”. Um fenómeno que diz ter encontrado na sua investigação nos anos 70, época em que não havia o mesmo nível de armazenamento em massa e digitalização. “Imagino o nível em que será atualmente”, comenta.