A maior crítica que tem sido ouvida em relação a uma candidatura presidencial de Gouveia e Melo, além da sua condição de militar, diz respeito ao facto de os portugueses conhecerem até agora muito pouco (ou nada) do seu pensamento.
Esta sexta-feira começámos a ouvir o Almirante, agora em fato civil, a dizer o que pensa. Foi pouco, mas esse pouco foi muito relevante.
E o que disse já dá para perceber o que deve ser a espinha dorsal do seu discurso e candidatura: as leis internacionais estão a ser postas em causa, a Europa está sob ameaça, tem de conseguir defender-se sem depender dos Estados Unidos, e para isso tem que gastar e investir mais na sua defesa, tem de reequacionar as suas Forças Armadas. Até porque "A nossa liberdade está em causa".
Na sua primeira intervenção pública desde que deixou de ser Chefe do Estado-Maior da Armada, e que passou à reserva, o Almirante Gouveia e Melo participou esta sexta-feira no Podcast Expresso da Manhã, do jornal Expresso, no âmbito do festival de podcasts do jornal, que assinalam os 52 anos de vida do jornal.
A participação de Gouveia e Melo era muito aguardada. Por todas as razões e ainda mais uma, a sondagem conhecida pouco antes que o dá como largamente favorito na corrida presidencial, quer numa primeira, quer numa segunda volta.
No final, e feitas as contas, o que disse ele sobre uma eventual candidatura presidencial em 2026? Pouco ou nada. Mas do que disse percebemos algumas coisas igualmente relevantes: a candidatura presidencial vai mesmo acontecer e já começamos a conhecer um pouco mais do seu pensamento em algumas áreas.
Gouveia e Melo começou por dizer que nesta altura, depois de três anos a liderar a Marinha e de antes ter comandado o processo de vacinação da covid-19, vai "tirar umas merecidas férias", e depois logo se se vê.
Mas depois desta nota prévia, tudo o que disse em seguida, nas respostas às perguntas de Paulo Baldaia e Vítor Matos, se enquadra no discurso de uma candidatura presidencial.
É necessário um reforço militar da Europa, da NATO e de Portugal, porque "estamos a ser ameaçados", "a nossa liberdade, e nossa prosperidade e a nossa segurança" estão postos em causa e não podemos "fingir que o problema não existe".
Mais, para o Almirante, o que estamos a assistir, com a ameaça a Leste e a erosão das democracias, é mesmo uma ameaça "à própria União Europeia".
Nesse sentido, defendeu uma aposta no "desenvolvimento da indústria" e na "reindustrialização inteligente" da Europa, de forma a contornar o facto de a despesa militar "por princípio não ser produtiva". Portanto, "discutir despesa é urgente e necessário". Exemplo? O aumento da despesa nacional em Defesa, atualmente nos 1,5% do PIB: "Não fazer um aumento de um por cento é no futuro perder tudo". "Vai haver afetação de despesas sociais. Mas o que interessam as despesas sociais se não tivermos pais?", sublinhou.
Eis um tema que vindo da boca de outro candidato podia queimar, mas o Almirante que quer ser Comandante Supremo das Forças Armadas sabe que para si pode ser um trunfo e não uma fragilidade.
Outro exemplo? O regresso do Serviço Militar Obrigatório, que terminou em Portugal há vinte anos, mas que agora está a ser reequacionado em vários países europeus.
"Temos de encontrar solução para isso, temos de investir em equipamento, mas também em pessoas. Se não estivermos disponíveis para isso, capitulamos". Qual a solução ao certo? "O regresso do modelo antigo do SMO não faz sentido", mas há soluções intermédias, salientou, dando exemplos de países europeus.
Quem mais na política nacional pode dizer que quer mais gastos com a defesa e que os jovens voltem ao serviço militar sem com isso temer perder votos e apoios? Quem mais pode reconhecer que as despesas sociais podem ser afetadas sem com isso arriscar afundar a sua candidatura?
Depois desta sexta-feira, conhecemos um pouco mais do que pensa e defende Gouveia e Melo. É certo que sobre temas relacionados com defesa e segurança. Mas quem disse que isso não é mesmo a aposta do Almirante? Assim, a partida é jogada em águas que bem conhece e onde nada mais à vontade.