À boleia do chumbo no orçamento, a moção de censura ao governo regional empurrou a Madeira para uma situação inédita de impasse político. Os próximos tempos permitirão aclarar o desenho de novas soluções governativas e institucionais. Várias questões pairam sobre o aparelho partidário madeirense e a relação com um eleitorado que sempre votou maioritariamente no PSD.
Será que o partido de Miguel Albuquerque, apesar do desgaste governativo, decisivamente abalado pela péssima gestão dos incêndios no verão, conseguirá sobreviver à instabilidade, apoiado nos despojos da herança jardinista? Será que o Partido Socialista na Madeira tem força para se apresentar como uma solução robusta de governo? Se sim, fá-lo-á sozinho ou irá colocar à prova o cordão sanitário relativamente ao Chega, útil para aprovar a moção de censura de ontem?
E quão firme está o cordão sanitário do lado do PSD Madeira? Há novas forças políticas de contestação que podem emergir deste período de instabilidade sem precedentes na política regional? Qual o papel do crescimento do Juntos pelo Povo (JPP) nesta miscelânea de coligações e acordos de incidência parlamentar?
Enquanto os próximos meses se encarregarão de dar robustez à situação frágil na Madeira, a preocupação deste artigo é outra. A preocupação é com a pequena peça da engrenagem que precipitou um novo momento eleitoral para a escolha do executivo madeirense – o Orçamento. Tive a oportunidade de abordar aqui no Expresso a transformação dos Orçamentos, que passaram de instrumento de gestão para uma espécie de ferramenta para derrubar os alicerces de governos frágeis. Um prefácio das moções de censura, ou, noutros casos, uma mensagem para os respetivos presidentes quanto à necessidade de dissolução de um governo. Se o prefácio é o chumbo do Orçamento, como é que se escreve o posfácio das democracias europeias que começam a refugiar-se nesse chumbo para eutanasiar os respetivos governos?
Os orçamentos como reflexo de uma democracia mais consequente?
Não obstante o meu ceticismo quanto à utilização dos orçamentos como mecanismo de índole eleitoral, para cada tese há uma antítese, e reconheço que o escrutínio anual dos governos através do Orçamento do Estado aporta as suas vantagens do ponto de vista democrático. Parece-me evidente que, dado o flagelo da corrupção, que tem assolado regimes políticos por toda a Europa, um maior escrutínio das contas públicas é desejável.
Além do mais, abre-se espaço para a formação de uma democracia mais imediata. A possibilidade iminente de derrubar o governo leva a que haja uma penalização ou premiação instantânea aos governos. O controlo democrático exercido pela população sobre a classe política facilita um modo de democracia mais diretamente participado.
Caso a crise financeira e económica que se avizinha se perpetue no tempo, existe a possibilidade de assistirmos à cristalização desta evolução democrática nas próximas décadas. O Orçamento consolida-se como uma antecâmara de eleições – todos os anos!
Do outro lado da barricada estão os argumentos que (me) parecem ter mais peso quanto aos riscos desta mutação gradual dos instrumentos financeiros modernos. Neste flanco estão os que contestam esta evolução como se tratasse de uma gradual sabotagem da democracia como a conhecemos, que conduzirá ao seu inevitável enfraquecimento.
O espectro do chumbo orçamental cultiva a instabilidade permanente, que deixa os governos permeáveis a não avançar para decisões pouco populares, mesmo que necessárias. Esta inércia ocorre devido à erosão do “efeito de esquecimento” que acontece em mandatos de quatro anos, que tende a que o eleitorado castigue menos governos que tomaram decisões pouco populares há mais tempo (e.g: é improvável que uma medida pouco popular tomada nos primeiros meses de um executivo tenha uma repercussão eleitoral negativa significativa após quatro anos).
Quando existe a possibilidade de novo escrutínio eleitoral ao virar da esquina, anualmente, todas as medidas têm um propósito eleitoral intrínseco. Representa uma subversão dos típicos mandatos de quatro ou cinco anos. Os mandatos passam a estar subjugados a subcapítulos, dependentes do cumprimento de objetivos, numa aproximação à dinâmica empresarial dos targets, milestones e KPIs anuais.
A própria filosofia subjacente a mandatos de médio-prazo, como são os de quatro anos, sofre alterações na sua génese. Surgiu para que os eleitores se deslocassem às urnas para elegerem o projeto de sociedade que gostariam de ver implementado, na prática respondendo à questão: “em que tipo de sociedade gostaria de viver nos próximos anos?”. A partir do momento que os orçamentos se desvinculam da esfera económica e passam para a esfera política, os governos ou as eleições passam a suceder-se em curtos períodos, o projeto social da democracia sai enfraquecido.
Passa a existir uma dinâmica de valorização da política pública como instrumento para obter benefício material e económico imediato (sintomático de tempos e espaços onde grassa a insegurança económica e financeira). O espetro do chumbo orçamental a pairar como uma nuvem escura sobre a cabeça dos ministros subverte a ideia do voto como legitimador de um projeto social. Além disso, a implementação de um projeto político anual ou, pelo menos, que terá de viver sobre putativo escrutínio eleitoral anualmente, é pífia, para não dizer impraticável.
Como escrevi esta semana, a fragmentação parlamentar, com a emergência de partidos de causas-nicho a proliferarem, dada a especificidade e relevância de certos tópicos nas negociações orçamentais, não diminui a capacidade democrática das nações, no entanto, pode implicar bloqueios administrativos temporários. Uma fragmentação acentuada, associada ao recrudescimento de radicalismos, dificulta a tarefa de encontrar mínimos denominadores comuns entre todas as forças políticas envolvidas e respetivas agendas.
Num curto espaço de tempo, quatro governos abanaram e três caíram no centro e sul da Europa devido, em grande parte, ao escrutínio dos seus programas económicos e financeiros. As negociações orçamentais representaram o último reduto onde se discutiu a sobrevivência ou morte de governos em Portugal Continental, na Madeira, em França e na Alemanha. A tendência é para que o orçamento seja o police verso decisivo para governos em situações precárias. Este fenómeno tem implicações diretas para os modelos democráticos ocidentais como os conhecemos. Toda a política ganha um caráter de imediatismo, que perpetua um ciclo que temos procurado evitar nas últimas décadas: o excesso de sufrágios e a política pública eleitoralista de curto-prazo.