Em maio, as unidades ucranianas estavam em modo de preparação para o pior. A ofensiva de verão do exército russo, planeada durante o inverno com intenção de conquistar a totalidade do Donbas e ainda uma faixa de terra ao longo da linha da frente que pudesse servir como zona-tampão contra repetições do ataque ucraniano sobre Kursk, entrou com força no terreno - e esteve a avançar bem quase um mês, ao ritmo mais rápido desde novembro de 2024, conquistando uma média de sete quilómetros quadrados por dia.

Este número representa o dobro da área conseguida em abril deste ano, portanto no mês anterior ao lançamento da nova ofensiva, segundo informações da página DeepState, um projeto ucraniano de recolha de informações de fonte aberta e que acompanha as mudanças na linha da frente ao milímetro. Cerca de seis semanas após o início da ofensiva, o ímpeto do exército russo parece ter diminuído. Mas um período de calma não significa que a Rússia seja incapaz de continuar com a ofensiva, muito longe disso.

Ataque russo a supermercado em Donetsk, na Ucrânia
Ataque russo a supermercado em Donetsk, na Ucrânia Roman PilipeyAFP via Getty Images

O exército russo continua focado em tomar a chamada “espinha dorsal” das defesas ucranianas em Donetsk, ou aquilo que resta delas - Pokrovsk, Kramatorsk, Kostiantynivka e Sloviansk, mas mesmo aqui os avanços têm sido modestos.

Na sexta-feira, o Chefe de Estado Maior das Forças Armadas da Ucrânia, Oleksandr Syrskyi, disse, citado pela CNN, que a Rússia tem pelo menos “cerca de 110 mil” soldados nos arredores de Pokrovsk, a cidade que se tornou “o ponto mais quente” dos 1200 quilómetros de linha da frente. Ainda assim, há um ano que os russos tentam capturar a cidade, até agora sem sucesso. O site DeepState, tido com um dos mais confiáveis juízes das oscilações desta guerra, afirmou que as “defesas ucranianas continuam a ruir rapidamente e o inimigo está a fazer avanços significativos com ataques constantes”, na área em redor dessa localidade.

Apesar de assumir dificuldades, Oleksandr Syrskyi garantiu que a ofensiva em Sumy tinha sido interrompida. “Com base nos resultados de maio e junho, podemos dizer que a onda da ofensiva de verão do inimigo a partir do território russo está a enfraquecer”, afirmou o general, relatando que as tropas russas na região fronteiriça do nordeste foram detidas. Não é possível confirmar esta informação independentemente, porém há fontes próximas do exército russo a escrever quase o mesmo no Telegram.

Um conhecido blogger pró-guerra, Yuri Podolyaka, citado pelo “Washington Post”, escreveu que “as forças ucranianas conseguiram estabilizar a defesa de Sumy” e que “sem reforços significativos ou a retirada das unidades inimigas para outra parte da frente”, os soldados russos não iam conseguir “empurrar” os ucranianos em direção à cidade.

Donetsk, Sumi, Dnipro, tudo?

Ao contrário do que lhe exigiria o processo de negociações que aceitou iniciar, o Presidente da Rússia, Vladimir Putin, tem dado palco público a um recrudescimento da visão mais expansionista desta guerra. “Já disse várias vezes que os povos russo e ucraniano são, na verdade, uma única nação. Nesse sentido, toda a Ucrânia é nossa”, declarou numa conferência de imprensa para marcar a abertura do Fórum Económico de São Petersburgo na sexta-feira. Logo depois, no mesmo espaço, disse que a cidade de Sumy “não é um objetivo declarado”, mas “a Rússia não põe de lado” tomá-la.

Segundo os principais boletins de análise dos avanços e recuos da guerra, a Rússia está a tentar chegar a Yunakivka, uma localidade que fica no meio da estrada que liga a Rússia diretamente a Sumy. Essa conquista pode levar a artilharia russa para um ponto de onde será possível atacar aquela região. “A situação na linha da frente é, de facto, muito difícil, e isso não é segredo. A abertura do novo trecho da frente na região de Sumy complica ainda mais a situação, esgotando as forças ucranianas. Dito isto, a conquista territorial da Rússia acontece a um ritmo extremamente lento”, diz ao Expresso Volodymyr Dubovyk, investigador da Universidade Nacional Mechnikov, em Odesa.

Apesar da demora, a progressão das tropas, acrescenta ainda, “vai acontecendo” e é “nessa constância que o Kremlin encontrou a forma de se convencer que irá atingir um sucesso final”. E por isso mesmo, “a situação não está a levar a negociações reais e significativas”. O “Wall Street Journal” falou com algumas fontes ucranianas na linha da frente e os avanços russos em Sumy continuam, ainda que com soldados mal treinados que “morrem em troca de algum território”, como diz uma das pessoas ouvidas.

No domingo, a Rússia lançou o seu maior ataque aéreo contra a Ucrânia desde o início da guerra em grande escala. Pelo menos 477 drones e 60 mísseis voaram contra posições ucranianas, informou Yuriy Ihnat, porta-voz da Força Aérea ucraniana, à Associated Press.

Um dos poucos sucessos das negociações: libertação de presos dos dois lados
Um dos poucos sucessos das negociações: libertação de presos dos dois lados André Luís Alves

Dubovyk não tem dúvidas sobre os objetivos de Putin. “Penso que irá continuar sempre até alguém ou alguma coisa o parar, não vai chegar a um ponto em que decida, sozinho, que já chega”, acrescenta numa resposta por email.

Também para Mariya Omelicheva, professora de Estratégia na Escola Superior de Guerra na Universidade Georgetown, os objetivos “não mudaram”, apesar de “a contra ofensiva não estar a ter os resultados esperados. “O objetivo principal sempre foi, e continua a ser, que a Ucrânia deixe de ser um Estado soberano. Não significa que a Rússia vá conquistar todo o país, mas o objetivo final é que o Kremlin venha a ter poder para ditar as escolhas políticas da Ucrânia. Mais imediatamente, os russos querem ocupar um vasto território ao qual agora Putin se refere como zona tampão, usando o pretexto da ofensiva bem-sucedida do lado ucraniano na região de Kursk”, diz ao telefone com o Expresso.

Um terceiro nível passa por “separar física e psicologicamente a Rússia da Europa, isolar os russos do resto do mundo liberal”, diz a professora, referindo que estes propósitos “há muito que são defendidos na esfera nacionalista de extrema-direita”, simplesmente agora “são uma possibilidade mais séria dada a oportunidade oferecida pelos Estados Unidos, que se retiraram deste conflito e da Europa em geral, atolados em questões relacionadas com o Médio Oriente”.

O Instituto para o Estudo da Guerra (ISW, na sigla em inglês), um centro de análise diário ao que se passa no terreno na Ucrânia, com sede nos Estados Unidos, escreve, no seu boletim de 28 de junho, que “apesar das batalhas extremamente intensas, a Ucrânia tem conseguido parar o avanço da Rússia na região”, maioritariamente porque, explicam os analistas do ISW, os solados que têm sido enviados para as linhas da frente ativas carecem de treino adequado, material, apoio logístico, etc., queixas que os próprios soldados escrevem na rede social Telegram, um valioso acervo de informação para os analistas que tentam perceber melhor o que realmente pensam os russos quando se sentem protegidos, pelo anonimato e pela encriptação da rede, e se põem a escrever sem pensar muito nas consequências.

Os posts no Telegram que confirmam os problemas

Um jornalista e escritor russo exilado em Berlim, Ivan Philippov, tem recolhido alguns destes contributos para um livro que está a escrever sobre estas contas “pró” e “anti-Kremlin” que surgiram no Telegram depois do início da guerra em grande escala e falou com o “Washington Post” sobre algumas das mensagens mais interessantes que encontrou sobre este momento específico da guerra.

Uma delas, de alguém que se identifica como “Callsign Ossetian” e que escreve sobre desenvolvimentos na linha da frente, e escreveu a 17 de junho o seguinte: “Compreendo que as pessoas estejam cansadas de ajudar o exército e cansadas da guerra. Compreendo por que razão muitas pessoas questionam a necessidade de ajudar o exército e não tenho respostas para essas perguntas”.

Um outro blogger muito citado, de seu nome “Filologista numa Emboscada”, escreveu, a 24 de junho, que a ideia de patriotismo é difícil de vender a quem paga do próprio bolso boa parte da comida e do material de combate. “Enquanto um soldado for obrigado a gastar metade do seu salário em batatas, cebolas e cenouras, leite e carne, drones, coletes à prova de balas e uniformes, armas e cartuchos, geradores e gasolina para eles, Starlinks e rádios, será difícil aceitar o ‘patriotismo’ que querem forçar sobre ele”. As aspas em “patriotismo” são do próprio.

“A ofensiva tem estado parada, fizeram alguns avanços mínimos mas os obstáculos são imensos, desde a corrupção nas forças armadas, passando pela falta de material e treino, problemas de abastecimento logístico, uma linha da frente gigantesca que é impossível guarnecer com muitos soldados em toda a sua extensão, e o moral em baixo, etc. Isto é mais uma ofensiva a meio gás, não muito diferente de outras durante estes mais de três anos”, diz a professora de Georgetown.

A Rússia é “alérgica ao risco” e quer “acima de tudo” impedir uma nova incursão ucraniana como a que se viu em Kursk e por isso “não avança em força numa só área”, optando por “uma guerra de desgaste, com um elevado número de baixas, numa tentativa de ganhar tempo e de quebrar ainda mais o moral da Ucrânia e usar isso como tática de pressão nas negociações”.

Antes da guerra, os presidentes da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, e dos EUA, Donald Trump, num encontro à margem da Assembleia Geral da ONU, em Nova Iorque
Antes da guerra, os presidentes da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, e dos EUA, Donald Trump, num encontro à margem da Assembleia Geral da ONU, em Nova Iorque SAUL LOEB/AFP/Getty Images

Uma outra razão para marcha lenta é a própria natureza da manobra ofensiva, “incomparavelmente mais difícil que a defensiva”, explica Mariya Omelicheva. “É uma guerra de trincheiras que lembra a Segunda Guerra Mundial, sim, há fortificações pesadas para impedir a artilharia, tanques e outros blindados. É muito difícil romper. E é isso que temos testemunhado. É uma guerra de desgaste árdua e lenta para se conseguir qualquer tipo de avanço ou retomar o território que foi capturado pelos russos.”

Dnipropetrovsk: se se confirmar a incursão é “um abalo” para a Ucrânia

As informações confundem-se, como é quase sempre o caso quando se trata de confirmar ou negar que determinado território foi conquistado pelos russos. Segundo os meios estatais da Rússia, Moscovo já entrou em Dnipropetrovsk, e já conquistou uma pequena povoação, Dachnoye, logo depois da linha de fronteira entre esta região e Donetsk, que fica a leste. Nada disto foi ainda confirmado pelos ucranianos e o mapa do DeepState mostra a zona com sombreado cinzento, o que significa que há disputas na área e não que já “caiu” para o lado russo. A região, que ainda não tinha sido invadida, tem, no entanto, experimentado fortes bombardeamentos, cujo principal objetivo é obrigar as pessoas a fugir, o que simplifica o processo de ocupação.

Dnipropetrovsk não está entre as cinco regiões ucranianas sobre as quais a Rússia reivindica autoridade, mas durante as recentes negociações de paz em Istambul, os representantes russos ameaçaram Kiev com a tomada de mais território, caso a Ucrânia se negasse a assinar um acordo que entregaria aos russos um quinto do território e impediria Kiev de ter um exército ou procurar qualquer aliança militar com o Ocidente. “Creio que a entrada nesta nova província é importante. É simbólico, mas também estratégico, porque a zona é importante para a logística ucraniana e pode ter um efeito negativo tipo dominó para o lado ucraniano. Isto para não falar da parte psicológica, uma nova província invadida é um forte abalo.”

Num outro desenvolvimento negativo para o lado dos ucranianos, no fim de semana as tropas russas ocuparam uma zona rica em lítio, em Donetsk, cortando acesso dos ucranianos a um recurso vital para a economia e para a parceria económica com os Estados Unidos que a Ucrânia está a tentar aprofundar.