O ex-deputado Au Kam San foi detido em Macau por suspeita de violação da lei de Segurança Nacional. O democrata foi deputado durante cerca de duas décadas na região e é português. A detenção foi anunciada pelas autoridades locais, que se referem ao suspeito através da idade e apelido, tendo a Reuters e a Teledifusão de Macau avançado que se trata de Au Kam San.

A Polícia Judiciária (PJ) acusa Au de estar em conluio com uma “organização anti-China” no exterior de Macau desde 2022, a qual terá “fornecido uma grande quantidade de falsas informações com carácter provocador, para exibição pública no estrangeiro e online nas redes sociais”, sem adiantarem qual a entidade em causa.

A par disso, a PJ diz também em comunicado que suspeita que “o indivíduo tem mantido contactos por um longo período, com diversas entidades Anti-China que se encontram fora da RAEM, e de fornecer repetidamente falsas informações sobre Macau a essas entidades ou aos meios de comunicação social operados por essas entidades”, com a finalidade de “[despertar] assim o ódio entre os residentes de Macau e até mesmo entre pessoas de vários países que desconhecem a verdade em relação ao Governo Popular Central da RPC e ao governo da RAEM, perturbando a eleição para o Chefe do Executivo de 2024 em Macau e levando a que países estrangeiros tomem medidas contra Macau”.

Segundo a PJ, Au foi presente ao Ministério Público pelo crime de estabelecimento de ligações com organizações, associações ou indivíduos de fora da RAEM para a prática de actos contra a segurança do Estado. Este crime pode ser punido com três a dez anos de prisão.

O advogado Sérgio de Almeida Correia, residente de Macau, defende que a detenção revela “um profundo desrespeito pela Declaração Conjunto Luso-Chinesa de 1987, pelo Estado de direito e pela própria Lei Básica”.

“As interpretações que têm vindo a ser feitas em matéria de liberdade de expressão, dos direitos de manifestação e de reunião, de edição, de publicação e de imprensa, para só referir alguns, não se coadunam, em meu entender com o espírito original que esteve na base da sua redacção e as múltiplas manifestações de intenções formuladas ao longo dos anos”, indicou em resposta ao Expresso.

residente chinês Xi Jinping, junto à guarnição do Exército de Libertação Popular da China estacionada em Macau.
residente chinês Xi Jinping, junto à guarnição do Exército de Libertação Popular da China estacionada em Macau. XINHUA / LI GANG

Até ao momento não se registaram condenações ao abrigo da lei de segurança nacional de Macau, aprovada em 2009 e revista em 2023. Segundo a Macau News Agency, este é o primeiro caso de segurança nacional da cidade.

Apesar disso, ao longo dos últimos anos registaram-se várias restrições no território outrora administrado por Portugal. A vigília que se realizava anualmente na cidade em memória das vítimas do massacre de Tiananmen de 1989 foi proibida (note-se que Au Kam San foi um dos fundadores da associação que organizou vigílias durante mais de três décadas, entretanto extinta). Cherry Au e Christy Au, filhas de Au Kam San, foram detidas em 2020 no dia de uma vigília proibida em memória do massacre, por suspeitas de reunião ilegal, mas o Ministério Público acabou por arquivar o caso. Tinham parado para tirar uma fotografia, com duas velas artificiais e uma publicação sobre os acontecimentos de 4 de junho de 1989. Foram transmitidas diretrizes aos jornalistas da TDM, instando-os a aderir ao “princípio do patriotismo” e proibindo a divulgação de informações contrárias às políticas da China. Deu-se a desqualificação de candidatos às eleições para a Assembleia Legislativa, tanto em 2021 como em 2025. E o secretário para a Segurança considerou recentemente que a realização de manifestações pode “trazer conflitos à sociedade, à segurança de Estado”.

“Houve uma aceleração supersónica do processo de integração na RPC incompatível com as garantias de 50 anos do período de transição, com o princípio da separação de poderes, tal como nós o vemos, que só não viu quem não quis e a que o Estado português esteve sempre desatento”, comenta o advogado.

Almeida Correia acusa os políticos portugueses que estiveram no poder nas últimas décadas de se interessarem apenas em "fazer negócios" em Macau e na China. "Os residentes de Macau ficaram, e estão, entregues à sua sorte. O medo, o silêncio e a subserviência ao poder político são hoje os pilares das acções individuais e colectivas", observa.

O Expresso tentou entrar em contacto com o Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal mas até à publicação deste artigo não recebeu resposta.

Jason Chao, ativista e ex-dirigente da associação Novo Macau que atualmente vive na Europa, entende que “a detenção de Au vai tornar a chamada ‘linha vermelha’ mais ténue e incerta”, destacando que “o efeito intimidante sobre a população de Macau será forte”. “Para mim, o momento da detenção pode sugerir uma motivação de que as autoridades chinesas e de Macau querem eliminar qualquer crítica, por mais pequena que seja, das próximas eleições da Assembleia Legislativa”, observa.

Estão previstas eleições para a Assembleia Legislativa da região a 14 de setembro. Os 33 deputados que a compõem são escolhidos por três vias diferentes: 14 por sufrágio direto, 12 através de associações e sete nomeados pelo Chefe do Executivo (o líder do governo local). Nas eleições de 2021, a comissão eleitoral excluiu cinco listas. Recentemente, a Comissão da Defesa da Segurança do Estado afastou a candidatura de duas listas às eleições que se avizinham.