No filme Império da Luz, o discreto Norman, responsável pela projeção dos filmes no cinema em que grande parte da história toma lugar, explica ao jovem Stephen, enquanto segura nos dedos um cigarro aceso e falando como se fosse um filósofo que sussurra um dos segredos do Universo, que tipo de “magia” (ciência) ocorre no nosso cérebro quando os espetadores estão a ver uma longa-metragem, a partir de uma película de fotogramas. E, aqui, tão pouco importa se é um filme vulgar e aborrecido ou um daqueles que nos suscita sentimentos e nos agarra do início ao fim:

“É mesmo fantástico. Porque são apenas fotogramas estáticos com escuridão pelo meio. Mas há uma pequena falha no nosso nervo ótico, e se eu passar o filme a 24 fotogramas por segundo não se vê a escuridão. Chama-se Fenómeno Phi. Ver imagens estáticas em sucessão rápida cria uma ilusão de movimento. Uma ilusão de vida.”

Não nos adensemos no outro significado oculto que esta certíssima descrição implica para toda a trama do filme realizado por Sam Mendes. Vamos ao que interessa. Para o bem e para o mal, a tecnologia que criamos tem a espantosa capacidade de nos iludir, sugar a nossa atenção e criar novos caminhos neuronais no próprio cérebro que a criou – e, assim, alterar a maneira como pensamos e nos comportamentos. Parafraseando Norman, isto “é mesmo fantástico”.

A tecnologia que deu forma ao cinema surgiu no final do século XIX, mas poucos imaginariam, à época, que na segunda vintena do século XXI quase toda a humanidade estivesse de olhos grudados, todos os dias e dando largo uso ao dedo indicador, a um pequeno ecrã luminoso de um dispositivo chamado telemóvel (ou smartphone), navegando por um vasto oceano digital chamado Internet. As redes sociais digitais, Made in Silicon Valley, só amplificaram ainda mais o fenómeno.

Muitos livros de sociologia e filosofia, assim como incontáveis estudos científicos surgiram nas últimas duas décadas, para explicar esta nova realidade, com dois mundos diferentes a surgirem e a chocarem entre si. Simplificando ao máximo. Por um lado, diz-se que estamos mais interligados a nível global, mais informados sobre o que se passa em todo os cantos e recantos, quase em tempo real, sendo que tudo parece possível de aceder ou adquirir à distância de um dedo premido no ecrã. Ao mesmo tempo, estamos imersos em ecossistemas – as redes sociais – cuja arquitetura e algoritmos foram cuidadosamente delineados para (“jogando” com o sistema de recompensa do nosso cérebro e o neurotransmissor responsável por ele: a dopamina) nos tornar dependentes, quase como que viciados, nas muitas plataformas digitais que hoje proliferam.

Pelo meio, as interações sociais no mundo digital – começando na possível ligação com “outro”, inclusive com o que é diferente – parecem ter recuado em qualidade, pelo que ficámos fechados em bolhas exíguas em que só ouvimos o eco dos nossos pensamentos e ideias, assim como daqueles que pensam da mesma forma.

A isto junte-se um novo termo, bem recente, que reflete o tipo de conteúdos dominantes na Internet e o efeito que podem estar a ter a nível psicológico e comportamental: falamos do doomscrolling. Ele diz respeito à tendência incessante para continuar a procurar, deslizando o dedo pelo ecrã abaixo, por notícias negativas, sejam elas tristes, depressivas ou macabras. Trata-se de um fenómeno que está a preocupar a comunidade médica, por causa dos sérios efeitos na saúde mental.

A “Sociedade dos Ecrãs” está em todo o lado: assim que acordamos, quando esperamos pelo autocarro ou quando já estamos na cama; com ela vem a necessidade de nunca estar parado, sempre em busca de algo.

Vamos mais longe. Um estudo publicado no último verão, e cujas autoras voltaram a dar conta num artigo publicado neste mês de dezembro no The Conversation (um projeto editorial que junta académicos e jornalistas), procurou responder a uma simples mas importante questão. Neste mundo digital em que vivemos, quase todo ele mediado por ecrãs, sejam eles do telemóvel, tablet, computador ou da “velhinha” televisão – existindo, por isso, quem lhe chame de Sociedade dos Ecrãs –, o que fazemos nós nos nossos tempos livres ou naqueles períodos vazios que surgem diariamente? Será que aproveitamos para ler um livro? Ficamos a divagar em silêncio nos nossos pensamentos? Aproveitamos para fazer breves introspeções sobre o que fizemos ou vamos fazer? Puxamos pela memória e relembramos os bons e maus episódios que envolvem decisões nossas ou aqueles que se cruzam na nossa vida? Nada disso. A resposta parece ser bem mais prosaica e em linha com o “espírito” intelectual, social e cultural que predomina.

“Entrevistámos 300 pessoas em toda a Europa para perceber como utilizavam os dispositivos digitais no dia a dia. Esta investigação mostrou que as pessoas querem evitar os períodos de tempo vazio nas suas vidas, e, por causa disso, elas preenchem esses períodos realizando tarefas, algumas das quais não seriam possíveis sem [as novas] tecnologia[s].”

“Quer seja estar à espera de um autocarro, acordar de manhã ou estar deitado na cama à noite, os nossos participantes relataram que o tempo que anteriormente estaria ‘vazio’ foi agora preenchido com aplicações que treinam o nosso cérebro, criando listas de coisas que deviam fazer ou experimentar, com base no seu feed das redes sociais, ou criando listas de tarefas destinadas a administrar a sua vida.

Parece que os momentos tranquilos em que as pessoas observam, imaginam e sonham acordadas são agora preenchidos com tarefas tecnológicas”, resumem para o The Conversation três das autoras do estudo – cada uma delas ligadas a centros de investigação do Reino Unido, Polónia e Chéquia.

O que poderá estar na origem deste fenómeno?

“O crescimento das tarefas digitais está a acontecer, em parte, porque a tecnologia parece estar a mudar a nossa perceção do que é o tempo livre. Para muitas pessoas, já não é suficiente simplesmente jantar, ver televisão ou talvez fazer uma aula de ginástica. Em vez disso, e numa tentativa de evitar perda de tempo, estas atividades são realizadas ao mesmo tempo que se navega na Internet, em busca dos ingredientes para uma vida mais perfeita, ao mesmo tempo que tentam desenvolver um sentimento de realização pessoal”, respondem.

“À primeira vista, algumas destas tarefas podem parecer exemplos de como a tecnologia nos poupa tempo. Em teoria, os serviços bancários online deveriam significar que tenho mais tempo, porque já não preciso de ir ao banco na minha hora de almoço. No entanto, a nossa investigação sugere que não é esse o caso. A tecnologia está a contribuir para uma forma de vida mais densa.”

Coexistem, em nós, sentimentos contraditórios: procuramos, no mundo digital, sentir-nos melhor e pessoalmente realizados; mas, no fim, encontramos vergonha e arrependimento

Um breve contexto. Ruth Ogden, investigadora em psicologia experimental pela Universidade John Moores de Liverpool, no Reino Unido, é a líder de um grande projeto de pesquisa – batizado de TIMED – financiado com cerca de 1,5 milhões de euros e que durará até outubro de 2025, e do qual brotou o estudo em causa, assim como outros antes deste. O projeto envolve sete equipas de seis países e está a tentar perceber, junto dos cidadãos de algumas nações europeias, como e por qual motivo a “perceção, a utilização e a alocação de tempo”, pelas pessoas, estão neste momento a ser influenciados por diferentes níveis de imersão no mundo digital e nas normas culturais deste ecossistema. Mas, e mais importante: “como é que isso se repercute na qualidade de vida” de cada um de nós, na nossa sociedade como um todo?

Nas pesquisas até ao momento realizadas no âmbito da TIMED, surgem sentimentos contraditórios, referem as investigadoras (entre elas, Ruth Ogden) ao The Conversation, por partes dos cidadãos inqueridos. Apesar de procurarem preencher os tempos vazios e de pausa com tarefas possibilitadas pelas engenhocas e aplicações tenológicas, numa tentativa de se sentirem melhor e de realização pessoal, há outros sentimentos que vêm à tona:

“As redes sociais podem, por vezes, inspirar, motivar ou relaxar as pessoas. Mas a nossa investigação sugere que as pessoas têm frequentemente um sentimento de culpa, vergonha e arrependimento depois de preencherem o seu tempo livre com atividades online. Isto deve-se ao facto de elas considerarem as atividades online menos autênticas e úteis do que as atividades no mundo real.”

“Parece que as pessoas ainda consideram que dar um passeio ou estar com os amigos é mais valioso do que estar online. Talvez se pousarmos um pouco mais o telemóvel, tenhamos tempo para cozinhar as receitas que vemos online.”

O texto aborda, por fim, as “mudanças nos padrões de trabalho” provocadas pelas novas tecnologias digitais e que esbateram a fronteira entre a vida pessoal e o emprego, “intensificando o trabalho” em vez de o diminuir: o que constitui um verdadeiro paradoxo. Mas deixemos esse tema em específico para outro momento e para outro texto jornalístico.

Soluções para esta sensação de mal-estar? Uma ideia passa por voltar a um “Elogio da Lentidão” para o nosso cérebro ou “aceitar que, por vezes, não faz mal fazer pouco ou nada”

Para as investigadoras do projeto TIMED, “para nos libertarmos do hábito de preencher o tempo com mais e mais tarefas, temos primeiro de aceitar que, por vezes, não faz mal fazer pouco ou nada.” Esse pode ser um primeiro e decisivo passo, embora apontem outros.

Na visão do neurocientista e pensador italiano Lamberto Maffei (que não faz parte do projeto TIMED), e conforme escreveu em 2014 no ensaio Elogio da Lentidão, há algo importante que temos de ter em conta:

“Esquecemo-nos de que o cérebro é uma máquina lenta e este desejo de imitar as máquinas velozes criadas por nós torna-se fonte de angústia e de frustração, uma vez que, como escrevia Goethe, a felicidade suprema do pensador é sondar o sondável e venerar em paz o insondável.”

Basicamente, Maffei defende que tem de haver sempre espaço, e bastante, para o chamado “pensamento lento”, o qual, atualmente, parece estar em contraciclo com o que a sociedade (pelo menos a Ocidental) exige de nós, dos empregos que temos às tecnologias que usamos. Tudo tem de ser rápido, porque vivemos tempos velozes, e quem não acompanhar o ritmo fica para trás, no pelotão dos vencidos.

Créditos: Franz Bachinger / Pixabay

Esta lógica não convence o neurocientista, quanto mais não seja porque passou grande parte da sua vida (tem quase 90 anos) a estudar o cérebro humano, isto enquanto deitava para o lixo muitos dos mitos que existem em torno da forma como este órgão opera – durante vários anos foi diretor do Instituto de Neurociências do Conselho Nacional de Investigação de Itália, assim como presidente da Academia Nacional dos Linces, considerada a mais antiga academia científica do mundo. Tal como explica no seu ensaio:

É verdade que “o cérebro humano possui mecanismos ancestrais rápidos de resposta ao ambiente, automáticos ou quase automáticos, mas também mecanismos mais lentos, que apareceram mais tarde”. E são, precisamente, esses processos mentais lentos que nos permitem elaborar reflexões, raciocínios, e, inclusive, duvidar e recordar (através da memória).

“Num mundo que corre vertiginosamente, com lógicas amiúde incompreensíveis, o problema da lentidão surge na mente com prepotência, como meta do pensamento e do caminho a percorrer. Andar mais rápido não significa conhecer mais do que aquilo que o caminho oferece e ninguém quer chegar antes do tempo ao fim do seu percurso”, acrescenta.

Sobre a era digital, descreve-a como a era em que “a linguagem perde a continuidade dos sons e torna-se rápida, fragmentada, despedaçada dos inúmeros códigos comunicativos das diferentes categorias de indivíduos: as mensagens tornam-se sintéticas, como os sinais digitais”.

Mas, acima de tudo: “o pensamento de quem usa habitualmente instrumentos digitais não segue o percurso temporal que deriva da linguagem, mas procede em estreita interação com a máquina que corrige, propõe, anula repensamentos e intervém com os seus ritmos, também espaciais, na expressão dos pensamentos do autor”.

Segue-se uma questão da maior importância. Esta cultura digital, assente na velocidade e no pensamento rápido e superficial, pode passar de uma geração para a outra e tornar-se, daqui a muitos anos, numa nova e dominante característica do homo sapiens?

“Podemos perguntar-nos se esta hibridação entre cérebro e instrumento tem influência na estrutura cerebral. Todas as mudanças, inclusivamente mudar de ideias, desencadeiam processos de plasticidade cerebral e, portanto, mudanças de função e estrutura. É fácil ver, em particular nos mais novos, em que a plasticidade do cérebro é mais elevada, uma reestruturação da linguagem fonética e da escrita, que se tornaram mais sintéticas e rápidas como se quisessem encurtar espaço e tempo.

Contudo, estas mudanças são de tipo lamarckiano, estão ligadas à vida do indivíduo e, portanto, não podem ser herdadas. [Mas] se os estímulos tecnológicos persistirem e, como é provável, se se reforçarem, não se pode excluir que se tornem permanentes e passíveis de serem herdados, como de resto passou a ser a nossa linguagem, que certamente não se desenvolveu de um dia para o outro. Estou certo de que uma linguagem digital fará poupar muito tempo que pode ser dedicado, eventualmente, ao consumo, mas depois deixará muito a desejar!"

Muito bem, mas levantemos a hipótese de as tecnologias atuais levarem-nos de vencida, obrigando os seres humanos a terem de se adaptar a elas, de uma forma darwiniana, em vez de sermos nós a moldá-las. Em teoria, o que pode suceder?

Deixemos a resposta final, mais uma vez, para o veterano pensador italiano, com um piscar de olho para o modo como, hoje em dia, se faz política à lá minute a pensar na fugacidade dos média, ou, ainda, se tomam decisões económicas a pensar na forma como os mercados financeiros reagirão no imediato, reajustando-se logo de seguida quando a reação não é a esperada – como se estas instituições fossem criaturas vivas dotadas de um estado de humor, por vezes bastante volátil, que temos sempre de procurar agradar.

“O pensamento rápido, tão importante para a sobrevivência na história do homem, pode assumir uma valência diferente, no limite negativa, já que pode conduzir o homem por caminhos irracionais que originam problemas socioeconómicos e, portanto, de sobrevivência. De facto, o pensamento rápido, tão importante para fugir do perigo, pode mascarar-se e funcionar como engodo, uma sereia que nos chama para metas encantadas que não existem, cujo canto, abundantemente difundido pelos meios de comunicação social, é, para alguns, fascinante, mas para outros, por exemplo para mim, irracional, para além de absolutamente privado de poesia. […]”

“O êxito evolutivo dos homens rápidos traria o desaparecimento de todas as ações consideradas inúteis, como a contemplação, a poesia, a conversação pelo prazer de conversar, e o aparecimento de uma nova arte, em que a poesia é um tweet e a pintura é uma pincelada.”

“Poderia verificar-se um atrofio, pelo menos funcional, do hemisfério [cerebral] do tempo, com a consequente hipofunção do pensamento lento e hipertrofias vicariantes de outras estruturas nervosas, verosimilmente no hemisfério direito, preparadas para reforçar o tempo rápido.”