Foi na pacata cidade de Delmenhorst, no noroeste da Alemanha, que em 2017 especialistas de todo o mundo se reuniram pela primeira para debater e apresentar os estudos mais recentes sobre uma das épocas da história da Terra da qual ainda pouco se sabe, situada no período geológico do Triássico Superior. Para sermos mais exatos, os cientistas em Delmenhorst juntaram-se para trocar ideias e novas descobertas relacionadas com o chamado Episódio Pluvial Carniano (do inglês Carnian Pluvial Episode), ocorrido há entre 234 milhões e 232 milhões de anos e que ficou marcado por mudanças abruptas no clima e na biologia terrestre e marinha. Novas descobertas permitem supor que possa ter sido responsável pela ascensão de novas espécies, dos mamíferos aos dinossauros: especialmente estes últimos, pois foram eles que acabaram depois por dominar a Terra, ao longo de 165 milhões de anos.

O fascínio e o interesse científico por este intervalo de dois milhões de anos devem-se ao facto de ele surgir entre duas das maiores extinções em massa de vida animal que ocorreram no nosso planeta. A primeira, sendo a maior de que há registo, ocorreu no fim do período Pérmico (que se estendeu entre há 299 milhões e 252 milhões de anos), tendo dizimado 95% das espécies marinhas e 70% das terrestres. A segunda teve lugar no final do período Triássico (há entre 252 milhões e 201 milhões de anos) e eliminou 76% das espécies marinhas e terrestres. Atualmente, a ideia dominante é a de que esta última extinção em massa foi a grande responsável por permitir que os dinossauros se tornassem na espécie dominante em terra – abrindo portas ao período geológico seguinte, o Jurássico.

Mas voltemos atrás, até ao Episódio Pluvial Carniano – diz-se ‘Carniano’ porque aconteceu numa das sete idades em que está dividido o período Triássico, indo de há 237 milhões até há 227 milhões de anos. Afinal, por que se tornou tão importante perceber o que sucedeu nesta janela de tempo?

O geólogo italiano Jacopo Dal Corso resumiu em 2018, para a revista científica Journal of the Geological Society, as principais descobertas anunciadas em Delmenhorst, assim como outras que foram posteriormente publicadas sobre o Episódio Pluvial Carniano:

Basicamente, e ao analisar os sedimentos geológicos datados deste intervalo de dois milhões de anos, encontraram-se provas de uma enorme extinção de espécies marinhas pertencentes a importantes grupos: grupos como os amonites (moluscos que viviam dentro de conhas que, em alguns casos, chegavam a ter um metro de diâmetro) e os conodontes (peixes pré-históricos vertebrados que se parecem com as atuais enguias).

Fóssil de amonite, datado do período Jurássico (não do Triássico), encontrado na Serra de Montejunto, na região de Lisboa LM Coelho

Ao mesmo tempo, também há indícios de que houve uma rápida proliferação na superfície terrestre de animais como os dinossauros, enquanto nos oceanos se multiplicaram os organismos calcificadores, formados a partir de carbonato de cálcio que surgiu em maior concentração na água do mar – algo que ocorre quando se dá uma maior absorção pelos oceanos de dióxido de carbono, devido ao aumento da quantidade deste gás na atmosfera.

Mais. Por todo o mundo, salienta Jacopo Dal Corso, foram encontradas mudanças abruptas nos sedimentos correspondentes ao Episódio Pluvial Carniano, indicando que o clima passou por múltiplas fases, com zonas continentais (de terra) a ficarem submersas pela água.

Estes achados levaram à grande conclusão de que há entre 234 milhões e 232 milhões de anos o clima, a nível global, sofreu uma grande alteração e se tornou mais húmido, contrastando com o clima árido registado antes do Episódio Pluvial Carniano. Acima de tudo, este intervalo de tempo ficou “marcado pelo aquecimento global”, com evidências a apontar para “repetidas grandes perturbações no ciclo de carbono” da atmosfera terrestre, destaca o geólogo italiano. Todas estas mudanças terão sido despoletadas, indicam vários investigadores, por uma intensa atividade vulcânica ocorrida à época.

É preciso, portanto, analisar e perceber melhor qual o real e profundo papel dos vulcões em toda esta complexa dinâmica, marcada por mais dióxido de carbono na atmosfera e um clima mais quente e húmido, e que foi responsável, tal como explicou à revista The Conversation o paleontólogo britânico Michael Benton, da Universidade de Bristol (Reino Unido), por um período de dois milhões de anos que “desencadeou a era dos dinossauros”. Mas estes não foram os únicos animais a beneficiar do que então sucedeu ao planeta: “muito grupos de tetrápodes modernos, como as tartarugas, os lagartos, os crocodilos e os mamíferos datam dessa recém-descoberta época de revolução”, destaca.

Sedimentos de um lago na China mostram sinais de quatro episódios de forte atividade vulcânica associados a enormes libertações de dióxido de carbono para a atmosfera, ocorridos em dois milhões de anos. Os dinossauros e as plantas coníferas prosperaram com estas alterações climáticas.

No início deste mês de outubro, e para ajudar a dar respostas, foi publicado na revista científica Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS) um estudo que menciona a descoberta de quatro grandes episódios distintos de atividade vulcânica associados a significativas alterações climáticas, sendo que todos eles ocorreram durante o Episódio Pluvial Carniano.

A investigação, a cargo de uma equipa internacional de investigadores de universidades chinesas e britânicas – e que também contou com a participação de Jacopo Dal Corso, da Universidade de Geociências da China, da cidade de Wuhan –, centrou-se na análise aos sedimentos e fósseis de plantas encontrados num dos lagos da Bacia de Jiyuan, localizada no norte da China. Ao perscrutar no local os vários estratos geológicos os cientistas conseguiram identificar os episódios de atividade vulcânica que neles ficaram registados, assim como os seus efeitos no meio-ambiente.

E assim descobriram que há entre 234 milhões e 232 milhões de anos, a crer nos vestígios encontrados na Bacia de Jiyuan, ocorreram quatros destes episódios de atividade vulcânica, sendo que a principal fonte destas violentas erupções foi a atual região de basaltos (rochas formadas a partir de magma arrefecido) de Wrangellia, uma estreita placa tectónica situada na costa oeste da América do Norte (Canadá, principalmente).

“A nossa pesquisa mostra, através de detalhados registos de um lago no norte da China, que este período [correspondente ao Episódio Pluvial Carniano] pode compreender quatro eventos distintos, cada um impulsionado por distintos episódios de forte atividade vulcânica associados a enormes libertações de dióxido de carbono para a atmosfera. Isto desencadeou um aumento da temperatura e da humidade global”, explica através de comunicado de imprensa Jason Hilton, da Universidade de Birmingham, um dos coautores do estudo.

Sedimentos datados do Episódio Pluvial Carniano recolhidos na Bacia de Jiyuan Jing Lu / China University of Mining and Technology, Beijing

Indo mais a fundo, o estudo conclui que cada uma das quatro fases de erupção vulcânica coincidiu com momentos em que ocorreu uma enorme perturbação no ciclo de carbono da Terra, estando elas associadas a grandes alterações climáticas – uma maior humidade e mais chuva, neste caso –, a uma diminuição da percentagem de oxigénio na atmosfera e à dizimação de vida animal.

Esta recente descoberta feita na China, assim como as conclusões a que chegaram os investigadores, está em linha com as evidências encontradas noutras pesquisas anteriores, especialmente na Europa Central, no Leste da Gronelândia, em Marrocos, na América do Norte e na Argentina, destaca a Universidade de Birmingham no mesmo texto destinado à comunicação social. Em todos esses locais, frisa a instituição, há indícios de eventos geológicos semelhantes que ocorreram no mesmo período histórico, indicando um aumento da pluviosidade: todavia, esta água convergiu para lagos e pântanos, fazendo-os expandir, em vez de alimentar os rios e os oceanos.

Em suma. “Grandes erupções vulcânicas podem ocorrer em múltiplos e diferenciados momentos, demonstrando a sua poderosa habilidade para alterar o ciclo global de carbono, causar disrupção climática e hidrológica e dinamizar processos evolucionários”, acrescenta Sarah Greene, que também assina o artigo científico recentemente publicado.

Ainda segundo Emma Dune, paleobióloga da mesma universidade britânica (mas que não fez parte da investigação), “este relativamente longo período de atividade vulcânica e de mudanças ambientais terá tido consequências consideráveis para os animais em terra”. Principalmente porque “nesta altura os dinossauros tinham começado a diversificar-se, e é provável que sem este evento nunca tivessem atingido a dominância ecológica” que depois tiveram, a qual durou 165 milhões de anos.

Todavia, a relevância do Episódio Pluvial Carniano e dos dois milhões de anos que durou não se pode reduzir a este abrir de portas ao predomínio dos dinossauros, avisa Jason Hilton:

“Este notável período da história da Terra foi igualmente importante para a ascensão dos grupos modernos de [plantas] coníferas e teve um grande impacto na evolução dos ecossistemas terrestres e da vida animal e vegetal – incluindo as samambaias [plantas que são capazes de se reproduzir sem sementes, através dos esporos que libertam], os crocodilos, as tartarugas, os insetos e os primeiros mamíferos.”

As erupções vulcânicas de há 233 milhões de anos provocaram chuva ácida que caiu sobre a terra e o mar, matando plantas e organismos marinhos. Uma tragédia que acabou por dar origem aos ecossistemas marinhos modernos.

O paleontólogo Michael Benton, que na década de 1980 fez parte do grupo de investigadores que descobriu as primeiras pistas que apontavam para os acontecimentos ocorridos durante o Episódio Pluvial Carniano, resumiu para a revista The Conversation o quão disruptivo foi para a Terra e os seus ecossistemas as fortes erupções vulcânicas ocorridas há cerca de 233 milhões de anos.

“As enormes erupções de Wrangellia libertaram dióxido de carbono, metano e vapor de água na atmosfera, levando ao aquecimento global e ao aumento da chuva em todo o mundo”, começa por indicar. Isto levou a que as erupções fossem responsáveis pela queda de “chuva ácida”, “pois os gases vulcânicos misturaram-se com a água da chuva para banhar a Terra” numa espécie de “ácido diluído, fenómeno que também provocou a acidificação dos oceanos menos profundos.

“O forte aquecimento da atmosfera expulsou plantas e animais dos trópicos e a chuva ácida matou plantas terrestres, enquanto a acidificação do oceano atacou todos os organismos marinhos com esqueletos de carbonato.”

No entanto, mesmo após o fim das erupções as temperaturas permaneceram altas e deixou de cair chuva nos trópicos, “o que causou a subsequente secagem da terra em que os dinossauros floresceram”, frisa.

“O mais extraordinário foi a reformulação da fábrica de carbonato marinho. Esse é o mecanismo global pelo qual o carbonato de cálcio forma grandes espessuras de calcários e fornece material para organismos como corais e moluscos construírem as suas conchas”. Essencialmente, o Episódio Pluvial Carniano “marcou o início dos recifes de coral modernos, bem como de muitos dos grupos modernos de plâncton, levando a mudanças profundas na química dos oceanos”. Antes do Episódio Pluvial Carniano, “a principal fonte de carbonato nos oceanos vinha dos ecossistemas microbianos”, mas depois deste evento ele “passou a ser impulsionado por recifes de coral e plâncton, onde novos grupos de microrganismos […] apareceram e floresceram”.

Ou seja, “esta mudança profunda nos ciclos químicos fundamentais dos oceanos marcou o início dos ecossistemas marinhos modernos”.