Os advogados de Gisèle Pelicot, vítima de múltiplas violações durante uma década, afirmaram esperar que este caso ocorrido em França sirva de exemplo histórico para questões de consentimento, submissão química e das relações entre homens e mulheres.
"Como é que, em França, em 2024, uma mulher ainda pode ser sujeita ao que Gisèle Pelicot foi durante pelo menos 10 anos? Como é possível encontrar em França 50 indivíduos, mas na verdade 70 homens [alguns nunca chegaram a ser identificados e não serão julgados]", para agredir sexualmente um corpo, questionou Antoine Camus, um dos dois advogados de Gisèle Pelicot, no Tribunal de Vaucluse, em Avignon, no sul de França.
A francesa, atualmente com 71 anos, foi drogada e violada durante 10 anos pelo marido, Dominique Pelicot, e por dezenas de homens que este recrutou na Internet, com idades compreendidas entre os 26 e os 74 anos.
Segunda fase do julgamento
Na abertura da segunda fase do julgamento, nas alegações finais das partes civis, Antoine Camus recordou os vídeos dos atos, meticulosamente registados, legendados e guardados pelo principal suspeito, Dominique Pelicot, em que a sua agora ex-mulher surgia tão imóvel "que se poderia pensar que estava morta".
"Com um gesto quase político de renúncia ao julgamento à porta fechada", decisão apresentada no dia 02 de setembro, na abertura do processo, Gisèle Pelicot "convidou toda a sociedade a interrogar-se, a tomar consciência, a mudar de mentalidades, para um futuro que rompesse finalmente com uma violência que gostaríamos de ver de outra época", afirmou Camus.
Para o advogado da vítima, Gisèle teria esta quarta-feira "todas as razões do mundo" para "colocar homens e mulheres uns contra os outros e para castigar a sexualidade masculina em geral", mas, frisou o causídico, a septuagenária escolheu "transformar esta lama em matéria nobre e ultrapassar a escuridão da sua história para encontrar um sentido: ela conta com o tribunal para a ajudar".
Durante uma hora, Antoine Camus pediu "justiça e verdade" para esta família, esta mulher, a sua filha e os seus dois filhos, e os seus netos, "enterrados durante quatro anos sob os escombros" após a "deflagração" da revelação dos factos, no outono de 2020.
O advogado não se debruçou apenas sobre Dominique Pelicot, descrevendo-o com uma "personalidade dividida", com o seu "lado A" de "bom marido, avô, amigo, vizinho", e o seu "lado B" quando, principalmente à noite, drogava a sua mulher com ansiolíticos para depois a entregar a desconhecidos.
Como arguido principal, Dominique reconheceu o seu papel de "maestro" das cerca de 200 violações registadas ao longo de uma década contra a sua ex-mulher na casa do casal em Mazan (Vaucluse), metade das quais cometidas por ele próprio. Dominique Pélicot arrisca uma pena de 20 anos de prisão.
O advogado concentrou-se igualmente nos 50 co-arguidos, insistindo que "todos eles tiveram vontade própria" e "escolheram deixar de pensar para dar primazia aos seus impulsos".
"Cada um, ao seu nível, contribuiu para esta monstruosidade e permitiu que o calvário de uma mulher continuasse", sustentou.
Antoine Camus apelou assim ao tribunal para que tome decisões "claras" e "firmes", nomeadamente sobre a questão da intencionalidade da violação, um argumento apresentado por quase todos os co-arguidos que reconhecem a materialidade dos factos mas não "a intenção de violar".
O advogado afastou a possibilidade de qualquer prejuízo para o julgamento dos arguidos, em resposta aos advogados de defesa que, durante a manhã, apresentaram o pedido ao tribunal relativamente a 33 dos 50 co-arguidos.
"Uma violação é uma violação", repetiu Camus, perante os advogados de defesa que podem afirmar que os seus clientes foram "manipulados" por Dominique ou que pensavam estar perante um casal libertino.
Para Antoine Camus, o julgamento também permitirá esclarecer a questão da submissão química, "o 'modus operandi' do crime perfeito: "Gisèle Pelicot não acordou com o rosto inchado ou ao lado de um desconhecido. Acordou ao lado de um homem que a amava, que não lhe batia e que tinha todo o gosto em marcar-lhe consultas médicas".
Durante esta manhã, antes do início das alegações finais, Dominique tentou mais uma vez pedir desculpa à família, nomeadamente à sua filha Caroline, a qual não tem provas concretas contra o progenitor que detinha no computador imagens dela nua, sem o seu conhecimento.
"Vais acabar sozinho, como um cão", afirmou Caroline, relataram as agências internacionais.
Na terça-feira, também Gisèle pediu no tribunal que a "sociedade machista" mude a forma como trata o crime de violação.
O veredicto deste julgamento deverá ser proferido, o mais tardar, a 20 de dezembro.