No último mês assistimos à queda de governos na Alemanha e na França devido a problemas estruturais no Orçamento do Estado (OE), vimos também crescente instabilidade nas negociações do OE Português, o que deixou o cenário de novas eleições a pairar. Para completar o ramalhete, e fazendo jus à época natalícia que se antecipa, também o chumbo do Orçamento no Parlamento regional da Madeira configura um preâmbulo da verdadeira moção de censura, que derrubou o executivo esta terça-feira.

Todas estas quedas do executivo têm na sua origem o mesmo instrumento basilar da democracia legislativa e do Estado de direito, o Orçamento do Estado (ou da região, no caso da Madeira). Outrora sub-reptício como um proforma, longe de gerar celeuma, com o principal propósito de oferecer substância financeira ao que já era conhecido de propósito político dos programas de governo, hoje assistimos à metamorfose da natureza do Orçamento. Assim, um documento de base colaborativa e construtiva, sublinhada nos debates na especialidade, onde os partidos tinham a oportunidade de negociar as respetivas agendas económicas e financeiras, tem vindo a transformar-se num instrumento de escrutínio protoeleitoral. Assim, o debate orçamental esvazia-se de propostas concretas e ganha uma natureza referendária, o que dilui o principal intento para que foi criado: a gestão das contas públicas do Estado.

Por isso, os governos caíram na Europa Central ao mínimo sinal de possível chumbo do orçamento e as negociações em Portugal desenvolveram-se num limbo tático entre os três maiores partidos. Uma discussão que foca em demasia o jogo político subjacente à intenção de cada uma das forças partidárias e pouco as propostas concretas no domínio financeiro.

Esta mudança de paradigma é recente e, por isso, ainda carece de uma explicação científica que encontre padrões de comportamento institucional semelhantes, mas é sintomática de alguns defeitos que os “nossos” sistemas democráticos devem limar, sob pena de verem a instabilidade dos seus executivos e a fragmentação dos seus parlamentos crescer e perpetuarem a existência do OE como referendo à continuação dos respetivos governos.

A ansiedade de uma possível crise económica e financeira é um gatilho para o chumbo orçamental?

A primeira causa (e a mais óbvia) sustenta-se na ideia de que uma crise económica e financeira devido ao ressurgimento de tensões bélicas nas fronteiras da Europa é uma realidade iminente. Um pânico financeiro que precede as grandes crises, tal como aconteceu com o subprime em 2008. Os recrudescimentos da instabilidade geopolítica fazem soar os alarmes da Comissão Europeia e outras instituições internacionais.

Quando assim é, estas instituições têm a tendência histórica de exigir ou recomendar uma redução da despesa pública aos países que serão mais afetados. Este requisito de diminuição da dívida pública baseia-se na ideia de que um país de contas certas é um país em que a população detém maior conforto financeiro para sobreviver perante um novo abalo nos mercados globais.

Pois, enquanto isto pode ser verossímil ou não, dependendo da escola financeira de quem analisa o cenário macroeconómico europeu, tem consequências diretas na construção dos OE.

Porquê? Porque uma diminuição da receita fiscal, uma redução do capital a entrar no cofre do Estado por via de impostos e outras fontes periféricas, conduz a uma erosão da capacidade real de redistribuição por parte dos executivos. Este fenómeno obriga a cortes em subsídios, nas revisões das remunerações das várias classes profissionais e redunda em novo aperto para a cada vez mais invisível classe média, cujo rendimento estagna enquanto a inflação nos mercados segue como comboio a todo o vapor em trajetória ascendente.

Orçamento como acessório na segmentação do eleitorado

O descontentamento dos setores afetados conduz a uma capitalização dessa insatisfação pela parte dos partidos na oposição, com principal destaque para os extremos do aparelho partidário. Isto torna o OE mais suscetível à fragmentação.

Assim, ao invés de uma posição concertada e negociada onde todos os partidos têm a oportunidade de mostrar as suas propostas (o que por norma acontece na especialidade), temos dentro desta divisão parlamentar a tentativa por parte dos partidos de captar franjas muito especificas do eleitorado. Apresentam-se como representantes de certos grupos sociais e defendem os seus interesses a partir de uma base de negociação inflexível. Caso não vejam estes interesses cumpridos, a resposta é inequívoca. É à lei do chumbo.

Esta orgânica parlamentar reminiscente de uma dependência anual do escrutínio ‘eleitoral’ do Orçamento contribui para a emergência de dois fenómenos corelacionados, mas bastante diferentes na sua configuração institucional. Por um lado, é propícia à radicalização dos partidos da oposição durante a discussão do orçamento, atentando no exemplo português e francês. Em alguns casos assistimos à concordância entre os partidos dos extremos opostos, como observado na moção de censura ao executivo francês. Uma batalha das pontas contra o centro, de novos projetos políticos que procuram romper com as instituições clássicas e os mecanismos tradicionais das democracias europeias.

Por outro lado, uma atenção redobrada, por vezes histriónica, a medidas particulares do OE (como aconteceu no caso português quanto à redução do IRC e ao IRS jovem), abre espaço a novos movimentos e partidos que tentarão centrar a sua base eleitoral junto da população que não se revê em medidas muito particulares. Tendência que já se vinha verificando, mesmo antes da metamorfose dos princípios do OE, com o crescimento de forças políticas muito ligadas a causas sociais particulares, que antes não encontravam nos parlamentos representação oficial e permanente. No caso português, temos os exemplos do PAN, como resposta à emergência climática e proteção da causa animal, e a Iniciativa Liberal com a liberalização profunda da economia, através do alívio radical da carga fiscal.

A possibilidade de crescimento de novos partidos com base nas propostas mais contestadas do OE é uma realidade latente. No entanto, esta tipologia de partidos de nicho é particularmente atenta às necessidades da sua base eleitoral. Enquanto a fragmentação do aparelho partidário e dos parlamentos nacionais pode exigir um esforço maior para a obtenção de consensos alargados, não representa necessariamente um enfraquecimento dos índices democráticos, segundo demonstram os mais recentes estudos. Pelo contrário, pode traduzir-se na politização de grupos sociais que, até aí, estavam alienados dos centros de poder.

O último sintoma da febre dos bloqueios orçamentais como moção de censura não é uma regra universal, mas colabora para o cenário de instabilidade durante as negociações. Uma posição fragilizada ou ingerência excessiva do Presidente da República no debate do OE, quando deveria limitar-se a assegurar o regular funcionamento das instituições democráticas, conduz a uma iminente crise política, seja através da possibilidade de dissolução da Assembleia ou da queda do governo.

As declarações proféticas do Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa sobre uma eventual crise política, na antecâmara da discussão orçamental, foram tudo menos um contributo edificador para a estabilidade das negociações que lhe sucederam. O reforço da posição de Macron, em França, ao assegurar que estava de pedra e cal na posição e que cumpriria todo o seu mandato indubitavelmente, quando o governo já estava titubeante deu a machadada final num governo ligado às máquinas desde os seus primeiros dias. São dois exemplos crassos de prioridades subvertidas por presidentes com imagem desgastada. Não é por acaso que França vai no terceiro primeiro-ministro em menos de um ano e que a Madeira terá as suas terceiras eleições legislativas em 18 meses. A maior preocupação de ambos foi conservar as suas posições (e respetiva imagem), mesmo que isso resultasse na imputação de culpas aos governos, enfraquecendo a capacidade negocial dos executivos a priori.

A sombra da crise, o aumento da fragmentação e extremismos nos parlamentos, bem como a fraca capacidade dos presidentes de oferecerem estabilidade às negociações orçamentais são três das possíveis causas que contribuem para este fenómeno de extrema politização dos OE. Analisadas parte das causas, amanhã debruçar-nos-emos sobre as consequências e desafios colocados às democracias europeias pela reconfiguração do propósito do Orçamento do Estado – a transmutação gradual de instrumento financeiro para mecanismo eleitoral de alta pressão.

Até breve!