"Em Lisboa, não se falava de outra coisa naquele final de Primavera de 1874: a faca de mato minuciosamente trabalhada em prata digna de um rei, encomendada por D. Fernando II, mas que este, afinal, desistira de comprar."

A faca, feita a preceito pelo artesão Rafael Zacarias da Costa ao longo de 11 anos de um trabalho duro de escultura de 130 animais na peça de prata, e que quase o levou à cegueira, é bem real e faz parte do legado histórico português, servindo agora de ponto de partida ao novo romance de Mónica Bello, que após passar pela direção de títulos como O Independente, Volta ao Mundo, Grande Reportagem e Diário de Notícias se dedicou aos livros, focando-se sobretudo no tema que mais a apaixona: os pedaços da nossa História protagonizados por navios afundados e tesouros perdidos e achados. Entre eles, destaca-se A Costa dos Tesouros e A Vida Extraordinária do Português que Conquistou a Patagónia.

Agora desafiada pela Fidelidade — que havia segurado a obra-prima de joalharia que naufragou ao largo da Bretanha, foi recuperada numa complexa e dispendiosa operação de resgate, exibida pelo mundo e cobiçada por caçadores de tesouros com igual admiração —, a escritora e ex-jornalista construiu à volta desta peça uma história que podia bem ser real, onde se misturam História e ficção numa aventura entusiasmante, editada pela Guerra e Paz.

Em vésperas do lançamento oficial, que acontece dia 11 de dezembro, no Espaço Cultural do El Corte Inglés, em Lisboa, o SAPO espreita as páginas e deixa-lhe aqui o primeiro capítulo, numa pré-publicação exclusiva de A Joia Que o Rei Não Quis.

A Joia Que o Rei Não Quis
A Joia Que o Rei Não Quis créditos: DR

EPÍGRAFE

«Tenho um mau pressentimento
em relação a isto.»
Indiana Jones, em Indiana Jones
e o Reino da Caveira de Cristal

«Com o engodo de uma mentira,
pesca-se uma carpa de verdade.»
William Shakespeare (1564-1616)

CAPÍTULO 1.

Dresden, Fevereiro de 2004

"Eva esconde os cabelos ruivos sob o capuz, puxa-o sobre os olhos fixos nas lajes de pedra do passeio enquanto vai avançando colada aos edifícios da Landhaustrasse. Muitos ainda estão em obras destinadas a devolver o esplendor barroco ao centro histórico da cidade. Apressa o passo no ar gelado daquela manhã de 14 de Fevereiro, data em que, há cinquenta e nove anos, o inferno caíra do céu, deixando a capital da Saxónia em ruínas. Durante quatro décadas, o bombardeamento de Dresden pelas forças aéreas britânica e norte-americana havia sido argumento de propaganda da República Democrática Alemã contra os governos capitalistas do Ocidente; agora, comemoravam-no os grupelhos de neonazis e de extrema-direita, explorando os vinte e cinco mil alemães mortos. Chamavam-lhe «marcha fúnebre» e desde o final da década de 1990 que os desfiles vinham engrossando a cada ano. Eva não os via, mas já passavam na rua carrinhas da polícia rumo à grande praça em frente, a Neumarkt, para despejar agentes armados à espera deles para o que desse e viesse. Virou antes disso, numa viela que desembocava em esplanadas desertas à espera dos turistas alemães e de Leste mal chegasse a Primavera, e meteu a chave na porta da loja de um velho e estreito edifício. Um dos muito raros que sobrevivera à chuva incendiária dos mil e trezentos bombardeiros.

Fechou a porta e deixou-se ficar por momentos na penumbra da luz filtrada pelos jornais velhos que forravam a montra. Passou pelas pilhas de livros, pela dúzia poeirenta de pratos e de bibelôs de porcelana de Meissen, pelas múltiplas bugigangas de latão, por uma colecção de chaves que já não abria qualquer porta, pela cristaleira velha e escura de carvalho, pelos restos de faqueiros de prata desirmanados, pela velha secretária do avô coberta por uma pilha de óleos escurecidos da «Florença do Elba». Podiam chamar a Dresden o que quisessem. Para ela, última descendente de uma longa linhagem de negociantes judeus em antiguidades e outras preciosidades mais ou menos antigas, os Moritz Meyer, aquela cidade e aquela gente não valiam nada.

Nunca percebera por que raio tinha o avô Moritz regressado a Dresden depois da guerra, em pleno Inverno de fome, juntando-se às quatro dezenas de sobreviventes da comunidade judaica que as bombas aliadas haviam salvado da última deportação marcada para a cidade. O resto da família, a primeira mulher, os dois filhos, irmãos, tios, primos, todos haviam morrido na Shoá. Em Auschwitz, ou Buchenwald, ou Theresienstadt, ou Dachau, ninguém sabia. O número tatuado no antebraço, no entanto, não deixava dúvidas sobre o seu paradeiro nos últimos meses da guerra. Auschwitz provavelmente, onde o registo dos prisioneiros fora sistemático, mas ele nunca falara sobre esses tempos de terror e sofrimento e nem ela nem ninguém se atrevera a perguntar. A única coisa que Eva sabia era que ele tinha regressado para desenterrar uma pesada mala que correra a esconder debaixo de um banco no «Grande Jardim», em Novembro de 1938, dias depois dos ataques e das prisões da Noite de Cristal. Com alguma sorte, aquele jardim barroco na boca do lobo, idealizado por um príncipe-eleitor e arquimarechal do Sacro Império Romano-Germânico no século xvii, seria provavelmente o último sítio onde alguém iria procurar fosse o que fosse. E quando a fome atacou os habitantes de Dresden naquele Inverno de 1946/47 e Moritz Meyer chegou à cidade feita em escombros, encontrou de facto o seu «tesouro» escondido sob o que sobrava do jardim, entre crateras e parcelas de hortas mal-amanhadas onde um bando de miúdos famintos ainda tentava catar uma batata ou uma cebola que tivesse escapado à colheita.

Por que raio tinha o velho Moritz permanecido em Dresden, ou na Alemanha, já agora, depois da guerra, Eva só podia imaginar. Permanecer no país dos carrascos talvez tivesse servido como uma espécie de vingança, de resistência silenciosa. Aquela também era a cidade dele, a cidade de várias gerações de Meyers, e não eram agora os alemães derrotados ou os russos e os comunistas que iriam expulsá-lo. Nem a ele nem às duas centenas de judeus que, cinco anos depois do fim do Reich, já tinham erguido uma nova sinagoga em Dresden. Teimosia, orgulho, fé? Eva nem sabia bem o que lhe chamar. Durante a adolescência, rogara-lhe várias pragas por não se ter mudado, quanto mais não fosse, para a outra Alemanha, mas não deixava de lhe admirar a força em continuar a viver naquele país depois de tantas perdas, em seguir com o negócio da família como todos os Moritz antes dele, atento a qualquer nova oportunidade.

Na verdade, o tal tesouro não passava de um monte de papelada e Eva nunca percebera o porquê de tanto mistério. Tudo o que lhe haviam dito era que continha documentos pertencentes a várias gerações de negociantes Meyer e pelo menos as últimas quatro haviam morado e tido loja aberta ali bem perto, por coincidência, numa rua nem de propósito chamada Moritz, também ela arrasada naqueles meados de Fevereiro de 1945.

Os preciosos documentos tinham ficado guardados durante anos numa velha arca de que ela se lembrava encostada à parede, junto ao bengaleiro, no primeiro andar por cima da loja. Durante anos, ninguém lhe mexera, nem o avô Moritz, que a usava para pousar o seu chapéu de feltro preto, nem o pai Moritz, único filho de um segundo casamento pós-guerra com Ruth, judia nascida na Polónia, que chegara a Dresden com algumas dezenas de outros refugiados em fuga após notícias de um reacender de pogroms anti-semitas. Os outros tinham seguido caminho na esperança de chegar à Baviera ocupada pelos norte-americanos e daí aos Estados Unidos ou à Palestina, mas ela tinha ficado. Eva não a conhecera. Nem conhecera a mãe, Sara. Ruth morrera da gripe asiática em meados de 1958 e, meses depois de Eva nascer, Sara fora um dos casos raros que não resistira à gripe russa de 1970. As poucas fotografias que encontrara da mãe mostravam uma mulher jovem e bonita, de quem, diziam-lhe, herdara a beleza e os olhos verdes em amêndoa. O cabelo aos caracóis ruivos ninguém sabia de onde vinha. Talvez fosse da fraca impressão a preto e branco, mas a Eva parecia sempre que uma névoa de melancolia a envolvia. Quanto ao pai, pouco se lembrava dele. Deixara-se consumir pela desolação e pelo infortúnio e tinha acabado com a vida atirando-se num dia cinzento de Inverno às águas do Elba, teria ela uns cinco ou seis anos.

Fora criada pelo velho Moritz, que parecia sobreviver a tudo e a todos. Com ele deu os primeiros passos no negócio das antiguidades que pusera mais do que a comida em cima da mesa de várias gerações da família. Com ele assistiu, ela eufórica, ele na expectativa, às imagens da queda do Muro e atravessou pela primeira vez a fronteira para Ocidente. Mas não há mal e não há bem que sempre dure, não é o que dizem? Pouco menos de um ano depois, Moritz Meyer fechava os olhos aos oitenta e nove anos de idade. Um enfarte agudo do miocárdio, tinham-lhe dito os médicos naquela manhã, levara-o sem aviso durante o sono. E ela levou-o a enterrar no Novo Cemitério Judaico, onde descansavam Meyers desde 1867, desde que deixara de haver espaço no velho cemitério do outro lado do rio. Eva acabara de fazer vinte anos e, dias depois, os alemães festejavam nas ruas a reunificação do país. Meteu umas peças de roupa numa mochila e os novos marcos que o avô Moritz passara a guardar em casa, não fosse preciso partir à pressa para começar de novo. Não lhe faltaria a liquidez amealhada em vários bancos suíços, que era para isso que a neutralidade daltónica da Suíça servia. Para isso e para um último refúgio seguro encravado numa montanha. Correu as cortinas, deu duas voltas à chave da porta e rumou à estação de comboio.

Não olhou para trás. Da família não sobrava ninguém, nunca fizera grandes amigos e dos poucos namorados ocasionais ficara-lhe apenas a lembrança de umas fracas experiências sexuais. Reparara em como os homens a olhavam, mas essa arma seria para usar num futuro próximo, sem sentimentos, escrúpulos ou arrependimentos. Horas depois, desembarcara em Berlim, capital ressuscitada numa Alemanha reunificada. Regressaria a Dresden alguns meses mais tarde para tratar da pequena herança. Ia manter a loja e o pequeno apartamento que o último Moritz Meyer lhe deixara, talvez um dia precisasse de lá voltar. Se alguma coisa a história familiar lhe ensinara era que o futuro era incerto e padrasto.

A partir de Berlim, onde assentara arraiais sem dar nas vistas num pequeno apartamento em Kreuzberg, bairro de estudantes, artistas e imigrantes turcos, Eva andara pelo mundo. Do avô herdara igualmente uma vasta rede de contactos e informadores num mercado sem fronteiras de coleccionadores e traficantes, de poucos escrúpulos e sem lugar para ideologias, que ele conseguira manter durante todos aqueles anos dos dois lados da Cortina de Ferro e mais além, atravessando o Mediterrâneo, chegando a Israel e estendendo-se até ao Golfo Pérsico.

Os anos noventa não lhe tinham corrido mal. O velho Moritz não tinha sido o único a deixar a salvo preciosidades debaixo de terra. De aristocratas a burgueses e cidadãos mais e menos endinheirados, muitos haviam corrido a enterrar as relíquias e as preciosidades de família nos campos de caça, jardins ou quintais perante o avanço das tropas russas. Alguns desses tesouros haviam sido negociados para o Ocidente pelo avô Moritz, o Judeu de Dresden, como lhe chamavam no mercado das sombras, sob as barbas ou com a conivência de algumas altas patentes do regime germano-soviético. E alguns haviam conseguido escapar durante quase meio século, primeiro, às tropas ocupantes de Moscovo, depois, aos caçadores de tesouros sancionados pelo regime ou pelo mercado negro. Destes, Eva aproveitara para fazer e consolidar a sua carreira de negociante em raridades, mesmo que algumas fossem mais modernas do que antigas: móveis, pratas e jóias, pinturas, esculturas, tudo o que viesse à rede. Muitos preferiam evitar a publicidade e as comissões das grandes casas leiloeiras, provavelmente também a partilha com potenciais ou outros herdeiros. Ela não fazia perguntas. Fora a propósito de uma destas descobertas, por exemplo, que havia aterrado na Riviera Francesa, num belo apartamento sobre o mar onde se refugiara um velho aristocrata alemão, dono de uma dúzia de caixotes cheios de preciosidades às quais havia sido preciso dar destino depois de desenterradas uma centena de quilómetros a Nordeste de Berlim. Desde os primeiros meses de 1945 que ali tinham permanecido, intocadas, as pratas centenárias da família.

O tesouro daquele aristocrata tinha sido um dos seus primeiros e bons negócios e não fora caso único. Em alguns, Eva tinha ganhado, noutros chegara tarde demais. Ainda se enervava quando pensava nas jóias, nas pedras preciosas e no ouro dos príncipes da Saxónia que haviam escapado ao saque das tropas russas e que uns amadores tinham encontrado, por esses anos noventa, enterrados ainda nos jardins do Palácio de Moritzburg, a menos de vinte quilómetros de Dresden.

Esses tempos de caça aos tesouros por desenterrar, no entanto, já lá iam e as pequenas preciosidades escondidas de que alguns alemães de Leste ainda se desfaziam não valiam o trabalho. Nos primeiros meses do novo século, Eva virara-se para o resto do mundo, começando a trabalhar por encomenda. O ataque de 11 de Setembro em Nova Iorque, a guerra no Afeganistão e depois a Segunda Guerra do Golfo tinham aberto novas oportunidades e novas rotas para o tráfico de antiguidades e obras de arte, que andavam de braço dado com, e alimentavam, o tráfico de armas, mas essas aventuras estavam a tornar-se perigosas demais e os informadores e correios, quando não eram roubados, torturados ou assassinados, não eram de fiar. A recompensa podia ser grande, mas não valia o risco, como ficara provado na sua recente incursão ao Sudão. Encontrara-se com um informador em Cartum que lhe falara de um par de amuletos em ouro da Antiga Núbia que estariam disponíveis por um bom preço. Mas o informador, como depressa suspeitara, tinha duas caras e ela regressara de bolsos vazios. Por pouco não tinha dado o corpo às balas dos contrabandistas de um dos grupos rebeldes locais.

Talvez não fosse má ideia virar-se de novo para cenários mais pacíficos. Os museus holandeses e escandinavos, por exemplo, andavam ciclicamente nas bocas do mundo, alvos de roubos sucessivos. Mais tarde ou mais cedo, Picassos, Van Goghs ou mestres seiscentistas acabavam por ser recuperados, mas quando se tratava de jóias, o mais certo era não deixarem rasto. Ela não se teria importado de pôr as mãos naquele diamante em bruto de cento e trinta e cinco quilates, ou na gargantilha de brilhantes em ouro e prata, ou no castão de bengala em ouro com trezentos e oitenta e sete brilhantes, algumas das jóias da coroa portuguesa roubadas há coisa de dois anos de um museu em Haia.

Talvez ela não tivesse dado a devida atenção à papelada misteriosa que o avô Moritz conseguira salvar da destruição e da guerra. Eva sacudiu o pó do velho chapéu de Moritz, que ficara no mesmo sítio onde ele o tinha deixado e que desde então servia de comida às traças. Há mais de uma década que ela não voltava a Dresden nem àquela casa. Demasiadas recordações. Sacudiu-as com um encolher de ombros e abriu o tampo da arca. O cheiro a cânfora encheu momentaneamente a pequena sala e ela foi amontoando o que lhe pareciam ser livros de registos e caixas de documentos soltos em cima de uma mesa. Tudo aquilo dizia respeito aos negócios do antiquário que pertencera a quatro gerações de Moritz Meyer. Eva puxou uma cadeira e atirou-se ao trabalho. O registo mais antigo era dos anos quarenta de oitocentos e o mais recente acabava em vésperas da queda do muro de Berlim.

Cálices, esmaltes, castiçais, trompas de caça, vitrais, uma infinidade de objectos decorativos em prata, ouro e marfim, gravuras, muitas e muitas porcelanas. O primeiro Moritz Meyer de que havia registo comprara e vendera peças pela Europa fora e, chegado aos anos de 1850, nos duplicados das facturas guardadas passara a exibir o selo de «Fornecedor da Corte de Sua Alteza o Príncipe Augusto de Coburgo-Gotha, Duque de Saxe». Eva depressa ficou também a saber que o Príncipe Augusto não fora o único Coburgo-Gotha que fora fiel cliente daquele primeiro Moritz Meyer. Um outro membro daquela família de príncipes alemães chamou-lhe desde logo a atenção numa primeira factura passada em 1851, seguindo-se em dezenas de outras e durante várias décadas: Fernando de Saxe Coburgo-Gotha, rei consorte de Portugal. E não fora o único cliente pertencente à casa real portuguesa. Também a mulher, a rainha D. Maria II, e um dos filhos, Luís, que viria a ser rei, como revelaria o Internet Explorer na rápida pesquisa que faria no dia seguinte, haviam sido bons clientes.

Luís, pelos vistos, começara a coleccionar objectos decorativos desde cedo. A acreditar nos documentos, a primeira de muitas compras que fizera a Moritz Meyer fora uma faca de caça com punho e bainha em marfim profusamente esculpidos. Não que ela tivesse alguma preferência por negociar armas brancas decorativas, mas, nas areias de alguns desertos por onde passara, não seria difícil encontrar vários clientes interessados, sinónimo de que o leilão faria subir o preço. Eva Meyer estava decidida. No rasto daquele potencial negócio, teria de ir a Portugal. Voltou a fechar os livros e os documentos na velha arca, levou consigo o velho chapéu do avô para o salvar das traças e, mais uma vez, apanhou o comboio para Ocidente para não voltar tão cedo."

Faca de Mato
Faca de Mato créditos: DR